Apresentando o livro e o autor
O livro A peste, escrito
em 1947, nos traz as anotações de um cronista a respeito dos "curiosos
acontecimentos" que teriam se dado na cidade de Orã, por volta dos anos
1940. Segundo o cronista, Orã é "uma cidade comum" e "feia", "não
passando de uma prefeitura francesa na costa argelina", à primeira vista
igual a muitas outras vilas. No entanto, o clima e o relevo local fazem
da cidade um lugar peculiar: "um lugar neutro".
O romance A peste pode
ser lido como um relato sobre uma cidade assolada por uma epidemia ou
como uma alegoria para acontecimentos históricos que deixaram marcas
profundas na humanidade: uma referência à França ocupada na Segunda
Guerra Mundial pelo Nazismo.
Albert
Camus, o autor, foi jornalista, filósofo e escritor, de origem
argelina. Prêmio Nobel de Literatura em 1957, é considerado um dos
grandes autores do século XX e principal representante de uma corrente
de pensamento conhecida como absurdismo.
O
contexto da pandemia do novo coronavírus fez com que muitas pessoas se
voltassem para essa que é uma das principais obras de Camus, A peste.
Os textos selecionados neste blog funcionarão como provocações e como
mote para que possamos, diante dos acontecimentos desse ano de 2020, nos
sensibilizar, problematizar a realidade que nos cerca e, finalmente,
filosofar! Vamos nessa?
A cidade de Orã e os primeiros casos - trechos selecionados
(...)
Uma forma conveniente de travar conhecimento com uma cidade é procurar
saber como se trabalha, como se ama e como se morre. Na nossa pequena
cidade, talvez por efeito do clima, tudo se faz ao mesmo tempo, com o
mesmo ar frenético e distante. Isto é: aqui as pessoas se entediam e se
dedicam a criar hábitos. Nossos concidadãos trabalham muito, mas apenas
para enriquecer. Interessam-se sobretudo pelo comércio e ocupam-se, em
primeiro lugar, segundo sua própria expressão, de fazer negócios. (...)
Dir-se-á, sem dúvida, que nada disso é exclusivo de nossa cidade e que,
em suma, todos os nossos contemporâneos são assim. Nada mais natural,
hoje em dia, do que ver as pessoas trabalharem de manhã à noite e
optarem, em seguida, por desperdiçar no jogo, nos cafés e em tagarelices o
tempo que lhes resta para viver. Mas há cidades e países em que as
pessoas, de vez em quando, suspeitam que exista algo mais. Isso, em
geral, não muda a vida deles. Simplesmente houve a suspeita, o que já é
alguma coisa. Orã, ao contrário, é uma cidade aparentemente moderna. Não
é necessário, portanto, definir a maneira como se ama entre nós. Os
homens e as mulheres ou se devoram rapidamente, no que se convencionou
chamar de ato de amor, ou se entregam ao hábito de uma longa vida a
dois. Tampouco isso é original. Em Orã, como no resto do mundo, por
falta de tempo e de reflexão, somos obrigados a amar sem saber.
O
que é mais original na nossa cidade é a dificuldade que se pode ter
para morrer. Dificuldade, aliás, não é o termo exato: seria mais certo
falar em desconforto. Nunca é agradável ficar doente, mas há cidades e
países que nos amparam na doença e onde podemos, de certo modo, nos
entregar. O doente precisa de carinho, ter algo em que se apoiar. Isso é
muito natural. Em Orã, porém, os excessos do clima, a importância dos
negócios, a insignificância do cenário, a rapidez do crepúsculo e a
qualidade dos prazeres, tudo exige boa saúde. Lá o doente fica muito só.
O que dizer então daquele que vai morrer, apanhado na armadilha por
detrás das paredes crepitantes de calor, enquanto, no mesmo minuto, toda
uma população, ao telefone ou nos cafés, fala de câmbio, de notas
fiscais ou de desconto? Compreende-se o que há de desconfortável na
morte, mesmo nos dias de hoje, quando ela chega assim a um lugar seco.
(...)
O importante é ressaltar o aspecto banal da cidade e da vida. Mas os
dias passam sem dificuldades, desde que se tenha criado hábitos.
Partindo-se do princípio que a nossa cidade favorece justamente os
hábitos, pode-se dizer que tudo vai bem. Sob esse aspecto, sem dúvida, a
vida não é muito emocionante. Ao menos desconhece-se a desordem. E a
nossa população franca, simpática e ativa sempre despertou no viajante
uma estima considerável. Esta cidade sem pitoresco, sem vegetação e sem
alma acaba parecendo repousante e afinal adormece-se nela.
(...)
Agora podemos admitir sem pesar que nada podia fazer nossos concidadãos
preverem os incidentes que se deram na primavera desse ano e que foram,
como compreendemos depois, os primeiros sinais dos graves
acontecimentos cuja crônica nos propusemos fazer aqui.
(...)O
Dr. Rieux sabia alguma coisa a esse respeito. Isolado o corpo do
porteiro, telefonara a Richard para interrogá-lo sobre essas febres
inguinais.
-
Não compreendo nada - respondeu Richard. - Dois mortos, um em 48 horas,
o outro, em três dias. Eu tinha deixado o último, uma manhã, com todos
os indícios de convalescença.
- Avise-me se houver outros casos - disse Rieux.
Telefonou
ainda para outros médicos. Essa sindicância mostrou uns vinte casos
semelhantes em alguns dias. Quase todos tinham sido fatais. Pediu então a
Richard, secretário do Sindicato dos Médicos de Orã, o isolamento dos
novos doentes.
-
Mas não posso fazer nada - respondeu Richard. - Essas providências são
com a Prefeitura. Além disso, quem lhe diz que há risco de contágio?
- Ninguém, mas os sintomas são inquietantes.
Richard, entretanto, achava que não tinha "competência". Tudo o que podia fazer era falar com o prefeito.
Porém, enquanto se falava, perdia-se tempo.
Camus, Albert, A peste, Record.
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