sexta-feira, 24 de julho de 2020

Filosofia em Tempos de Pandemia - A peste (Albert Camus) - Parte 1

Apresentando o livro e o autor

O livro A peste, escrito em 1947, nos traz as anotações de um cronista a respeito dos "curiosos acontecimentos" que teriam se dado na cidade de Orã, por volta dos anos 1940. Segundo o cronista, Orã é "uma cidade comum" e "feia", "não passando de uma prefeitura francesa na costa argelina", à primeira vista igual a muitas outras vilas. No entanto, o clima e o relevo local fazem da cidade um lugar peculiar: "um lugar neutro".
O romance A peste pode ser lido como um relato sobre uma cidade assolada por uma epidemia ou como uma alegoria para acontecimentos históricos que deixaram marcas profundas na humanidade: uma referência à França ocupada na Segunda Guerra Mundial pelo Nazismo.
Albert Camus, o autor, foi jornalista, filósofo e escritor, de origem argelina. Prêmio Nobel de Literatura em 1957, é considerado um dos grandes autores do século XX e principal representante de uma corrente de pensamento conhecida como absurdismo.

O contexto da pandemia do novo coronavírus fez com que muitas pessoas se voltassem para essa que é uma das principais obras de Camus, A peste. Os textos selecionados neste blog funcionarão como provocações e como mote para que possamos, diante dos acontecimentos desse ano de 2020, nos sensibilizar, problematizar a realidade que nos cerca e, finalmente, filosofar! Vamos nessa?

A cidade de Orã e os primeiros casos - trechos selecionados

(...) Uma forma conveniente de travar conhecimento com uma cidade é procurar saber como se trabalha, como se ama e como se morre. Na nossa pequena cidade, talvez por efeito do clima, tudo se faz ao mesmo tempo, com o mesmo ar frenético e distante. Isto é: aqui as pessoas se entediam e se dedicam a criar hábitos. Nossos concidadãos trabalham muito, mas apenas para enriquecer. Interessam-se sobretudo pelo comércio e ocupam-se, em primeiro lugar, segundo sua própria expressão, de fazer negócios.  (...) Dir-se-á, sem dúvida, que nada disso é exclusivo de nossa cidade e que, em suma, todos os nossos contemporâneos são assim. Nada mais natural, hoje em dia, do que ver as pessoas trabalharem de manhã à noite e optarem, em seguida, por desperdiçar no jogo, nos cafés e em tagarelices o tempo que lhes resta para viver. Mas há cidades e países em que as pessoas, de vez em quando, suspeitam que exista algo mais. Isso, em geral, não muda a vida deles. Simplesmente houve a suspeita, o que já é alguma coisa. Orã, ao contrário, é uma cidade aparentemente moderna. Não é necessário, portanto, definir a maneira como se ama entre nós. Os homens e as mulheres ou se devoram rapidamente, no que se convencionou chamar de ato de amor, ou se entregam ao hábito de uma longa vida a dois. Tampouco isso é original. Em Orã, como no resto do mundo, por falta de tempo e de reflexão, somos obrigados a amar sem saber.
O que é mais original na nossa cidade é a dificuldade que se pode ter para morrer. Dificuldade, aliás, não é o termo exato: seria mais certo falar em desconforto. Nunca é agradável ficar doente, mas há cidades e países que nos amparam na doença e onde podemos, de certo modo, nos entregar. O doente precisa de carinho, ter algo em que se apoiar. Isso é muito natural. Em Orã, porém, os excessos do clima, a importância dos negócios, a insignificância do cenário, a rapidez do crepúsculo e a qualidade dos prazeres, tudo exige boa saúde. Lá o doente fica muito só. O que dizer então daquele que vai morrer, apanhado na armadilha por detrás das paredes crepitantes de calor, enquanto, no mesmo minuto, toda uma população, ao telefone ou nos cafés, fala de câmbio, de notas fiscais ou de desconto? Compreende-se o que há de desconfortável na morte, mesmo nos dias de hoje, quando ela chega assim a um lugar seco.
(...) O importante é ressaltar o aspecto banal da cidade e da vida. Mas os dias passam sem dificuldades, desde que se tenha criado hábitos. Partindo-se do princípio que  a nossa cidade favorece justamente os hábitos, pode-se dizer que tudo vai bem. Sob esse aspecto, sem dúvida, a vida não é muito emocionante. Ao menos desconhece-se a desordem. E a nossa população franca, simpática e ativa sempre despertou no viajante uma estima considerável. Esta cidade sem pitoresco, sem vegetação e sem alma acaba parecendo repousante e afinal adormece-se nela.
(...) Agora podemos admitir sem pesar que nada podia fazer nossos concidadãos preverem os incidentes que se deram na primavera desse ano e que foram, como compreendemos depois, os primeiros sinais dos graves acontecimentos cuja crônica nos propusemos fazer aqui.

(...)O Dr. Rieux sabia alguma coisa a esse respeito. Isolado o corpo do porteiro, telefonara a Richard para interrogá-lo sobre essas febres inguinais.
- Não compreendo nada - respondeu Richard. - Dois mortos, um em 48 horas, o outro, em três dias. Eu tinha deixado o último, uma manhã, com todos os indícios de convalescença.
- Avise-me se houver outros casos - disse Rieux.
Telefonou ainda para outros médicos. Essa sindicância mostrou uns vinte casos semelhantes em alguns dias. Quase todos tinham sido fatais. Pediu então a Richard, secretário do Sindicato dos Médicos de Orã, o isolamento dos novos doentes.
- Mas não posso fazer nada - respondeu Richard. - Essas providências são com a Prefeitura. Além disso, quem lhe diz que há risco de contágio?
- Ninguém, mas os sintomas são inquietantes.
Richard, entretanto, achava que não tinha "competência". Tudo o que podia fazer era falar com o prefeito.
Porém, enquanto se falava, perdia-se tempo.

Camus, Albert, A peste, Record.


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