quarta-feira, 22 de julho de 2020

Filosofia em Tempo de Pandemia - A peste (Albert Camus) - Parte 2

 Trechos selecionados 
A palavra "peste" acaba de ser pronunciada pela primeira vez. Neste ponto da narrativa, com Bernard Rieux atrás da janela, permitir-se-á ao narrador que justifique a incerteza e o espanto do médico, já que, com algumas variações, sua reação foi a da maior parte dos nossos concidadãos. Os flagelos, na verdade, são uma coisa comum, mas é difícil acreditar neles quando se abatem sobre nós. Houve no mundo igual número de pestes e de guerras. E contudo as pestes, como as guerras, encontram sempre as pessoas igualmente desprevenidas. Rieux estava desprevenido, assim como os nossos concidadãos; é necessário compreender assim as suas hesitações. Por isso é preciso compreender, também, que ele estivesse dividido entre a inquietação e a confiança. Quando estoura uma guerra, as pessoas dizem: "Não vai durar muito, seria estúpido." Sem dúvida, uma guerra é uma tolice, o que não impede de durar. A tolice insiste sempre, e nós a compreenderíamos se não pensássemos sempre em nós. Nossos concidadãos, a esse respeito, eram como todo mundo: pensavam em si próprios. Em outras palavras, eram humanistas: não acreditavam nos flagelos. O flagelo não está à altura do homem; diz-se então que o flagelo é irreal, que é um sonho mau que vai passar. Mas nem sempre ele passa e, de sonho mau em sonho mau que vai, são homens que passam e os humanistas em primeiro lugar, pois não tomaram as suas precauções. Nossos concidadãos não eram mais culpados que os outros. Apenas se esqueciam de ser modestos e pensavam que tudo ainda era possível para eles, o que pressupunha que os flagelos eram impossíveis. Continuavam a fazer negócios, preparavam viagens e tinham opiniões. Como poderiam ter pensado na peste que suprime o futuro, os deslocamentos e as discussões? Julgavam-se livre e jamais alguém será livre enquanto houver flagelos.

(...)
No dia em que o número de mortos atingiu de novo trinta, Bernard Rieux olhava o telegrama oficial que o prefeito lhe estendera exclamando: "Estão com medo!" O telegrama dizia: "Declarem o estado de peste. Fechem a cidade."
A partir desse momento, pode-se dizer que a peste se tornou um problema comum a todos nós. Até então, apesar da surpresa e da inquietação trazidas por esses acontecimentos singulares, cada um dos nossos concidadãos seguira com suas ocupações conforme pudera, no seu lugar habitual. E, sem dúvida, isso devia continuar. No entanto, uma vez fechadas as portas, deram-se conta de que estavam todos, até o próprio narrador, metidos no mesmo barco e que era necessário ajeitar-se. Foi assim, por exemplo, que, a partir das primeiras semanas, um sentimento tão individual quanto o da separação de um ente querido se tornou, subitamente, o de todo um povo e, com o medo, o principal sofrimento desse longo período de exílio. 

Na verdade, uma das consequências mais importantes do fechamento das portas foi a súbita separação em que foram colocados seres que não estavam preparados para isso. Mães e filhos, esposos, amantes que tinham julgado proceder, alguns dias antes, a uma separação temporária, que se tinham beijado na plataforma da nossa estação, com duas ou três recomendações, certos de se reverem dali a alguns dias ou algumas semanas, mergulhados na estúpida confiança humana, momentaneamente distraídos de suas ocupações habituais por essa partida, viram-se de repente, irremediavelmente afastados, impedidos de se encontrarem ou de se comunicarem.

(...)Assim, a primeira coisa que a peste trouxe aos nossos concidadãos foi o exílio. E o narrador está convencido de que pode escrever aqui, em nome de todos, o que ele próprio sentiu então, já que o sentiu ao mesmo tempo que muitos dos nossos concidadãos.

(...) Apesar desses espetáculos inéditos, parece que os nossos concidadãos tinham dificuldade em compreender o que lhes acontecia. Havia os sentimentos comuns, como a separação ou o medo, mas continuavam a colocar em primeiro plano as preocupações pessoais. Ninguém aceitara ainda verdadeiramente a doença. A maior parte era sobretudo sensível ao que perturbava os seus hábitos ou atingia os seus interesses. Impacientavam-se, irritavam-se e esses não são sentimentos que se possa contrapor à peste. A primeira reação, por exemplo, era culpar as autoridades. A resposta do prefeito diante das críticas de que a imprensa fazia eco ("Não se poderia propor medidas mais flexíveis?") foi bastante imprevista. Até então, nem os jornais nem a Agência Ransdoc tinham recebido qualquer estatística oficial sobre a doença. O prefeito passou a comunicá-la diariamente à agência, pedindo-lhe que publicasse uma nota semanal.

Mesmo nesse caso, contudo, a reação do público não foi imediata. Na verdade, o anúncio de que a terceira semana de peste somava 302 mortos não falava à imaginação. Por um lado, talvez nem todos tivessem morrido de peste. Por outro lado, ninguém na cidade sabia quantas pessoas morriam por semana em tempos normais. A cidade tinha 200 mil habitantes. Ignorava-se se essa proporção de óbitos era normal. É esse o gênero de detalhes com que nunca nos preocupamos, apesar do interesse evidente que apresentam. Ao público faltavam, de algum modo, ponto de referência. Foi só com o tempo, ao constatar o aumento das mortes, que a opinião pública tomou consciência da verdade. Com efeito, a quinta semana deixou 321 mortos e sexta, 345. O aumento, pelo menos, era significativo. Mas não era bastante forte para impedir que nossos concidadãos, em meio à sua inquietação, tivessem a impressão de que se tratava de um acidente, sem dúvida desagradável, mas, apesar de tudo, temporário.

Continuavam assim a circular nas ruas e a sentar-se às mesas dos cafés. (...)


flagelo: punição física, castigo, tortura; tormento, peste, calamidade pública;

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