segunda-feira, 20 de julho de 2020

O que a filosofia tem a nos dizer sobre a morte

Trechos selecionados

Texto 1
"Façamos mais esta reflexão: há grande esperança de que isto seja um bem. Morrer é uma destas duas coisas: ou o morto é igual a nada, e não sente nenhuma sensação de coisa nenhuma; ou, então,  como se costuma dizer, trata-se duma mudança, uma emigração da alma, do lugar deste mundo para outro lugar. Se não há nenhuma sensação, se é como um sono em que o adormecido nada vê nem sonha, que maravilhosa vantagem seria a morte!
Bem posso imaginar que, se a gente devesse identificar uma noite em que tivesse dormido tão profundamente que nem mesmo sonhasse e, contrapondo a essa as demais noites e dias de sua vida, pensar e dizer quantos dias e noites de sua existência viveu melhor e mais agradavelmente do que naquela noite, bem posso imaginar que, já não digo um particular, mas o próprio rei da Pérsia acharia fáceis de enumerar essas noite entre as outras noites e dias. Logo, se a morte é isto, digo que é uma vantagem, porque, assim sendo, toda a duração do tempo se apresenta como nada mais que uma noite. Se, do outro lado, a morte é como a mudança daqui para outro lugar e está certa a tradição de que lá estão todos os mortos, que maior bem haveria que esse, senhores juízes?
Se, em chegando no Hades, livre dessas pessoas que se intitulam juízes, a gente vai encontrar os verdadeiros juízes que, segundo consta, lá distribuem justiça (...), não valeria a pena a viagem? (...) Os de lá são mais felizes do que os de cá, entre outros motivos, por serem imortais pelo resto do tempo, se a tradição está certa.

                                                    Platão, Apologia de Sócrates, Nova Cultural.

Texto 2
Acostuma-te à ideia de que a morte para nós não é nada, visto que todo bem e todo mal residem nas sensações, e a morte é justamente a privação das sensações. A consciência clara de que a morte não significa nada para nós proporciona a fruição da vida efêmera, sem querer acrescentar-lhe tempo infinito e eliminado o desejo de imortalidade.
Não existe nada de terrível na vida para quem está perfeitamente convencido de que não há nada de terrível em deixar de viver. É tolo, portanto, quem diz ter medo da mote, não porque a chegada desta lhe trará sofrimento, mas porque o aflige a própria espera: aquilo que não nos perturba quando presente não deveria afligir-nos enquanto está sendo esperado.
Então, o mais terrível de todos os males, a morte, não significa nada para nós, justamente porque, quando estamos vivos, é a morte que não está presente; ao contrário, quando a morte está presente, nós é que não estamos. A morte, portanto, não é nada, nem para os vivos, nem para os mortos, já que para aqueles ela não existe, ao passo que estes não estão mais aqui. E, no entanto, a maioria das pessoas ora foge da morte como se fosse o maior dos males, ora a deseja como descanso dos males da vida.
O sábio, porém, nem desdenha viver, nem teme deixar de viver; para ele, viver não  um fardo e não viver não é um mal.
Assim como opta pela comida mais saborosa e não pela mais abundante, do mesmo modo ele colhe os doces frutos de um tempo bem vivido, ainda que breve.
Quem aconselha o jovem a viver bem e o velho a morrer bem não passa de um tolo, não só pelo que a vida tem de agradável para ambos, mas também porque se deve ter exatamente o mesmo cuidado em honestamente viver e em honestamente morrer.
Epicuro, Carta sobre a Felicidade, Editora Unesp

Texto 3
Lamento muito pela morte do teu amigo Flaco, porém não quero que tu sofras mais do que deves. (...) Morto um amigo, os olhos não devem ficar nem secos nem inundados; devem lacrimejar, não chorar copiosamente.
(...) "Como?", perguntais. "Devereis esquecer um amigo?" Será breve a memória dele junto a ti se ela ficar junto com a dor; algo fortuito a mudará em riso.
(...) Façamos com que seja alegra a memória dos nossos mortos. (...) Como costumava dizer o nosso Átalo, "a memória dos amigos falecidos é como alguns frutos que são suavemente ásperos, como o vinho muito envelhecido cujo próprio amargor nos deleita; porém, quando passou um espaço de tempo, toda angústia se extingue e nos vem um prazer puro".
(...) Eu te escrevo essas coisas, eu, que chorei tão imoderadamente o meu caríssimo Aneu Sereno, eu, que de modo algum desejava, estou entre os exemplos daqueles a quem a dor venceu. Hoje, porém, condeno o meu comportamento e compreendo que a maior causa do meu pranto foi nunca ter pensado que ele poderia morrer antes de mim. Esta é a única coisa que me ocorria: que ele era mais jovem que eu, muito mais jovem, como se o destino seguisse uma ordem cronológica.
Assim, assiduamente reflitamos sobre a mortalidade tanto nossa quanto de todos aqueles que estimamos. Eu deveria ter dito: "O meu Sereno é mais jovem que eu, mas o que isso importa? Deve morrer depois de mim, mas pode morrer antes." Já que não agi assim, o destino me pegou despreparado para uma desventura súbita. Agora leva em conta que todas as coisas  são mortais e, enquanto mortais, têm leis incertas. Poderia acontecer hoje aquilo que poderia acontecer num dia qualquer.
Sêneca, Aprendendo a viver, L & PM.

Texto 4
Diz Cícero que filosofar não é outra coisa senão preparar-se para a morte. Isso, talvez, porque o estudo e a contemplação tiram a alma para fora de nós, separam-na do corpo, o que, em suma, se assemelha à morte e constitui como que um aprendizado em vista dela. Ou então é porque, de toda sabedoria e inteligência, resulta finalmente que aprendemos a não ter receio de morrer. Em verdade, ou nossa razão falha ou seu objetivo único deve ser a nossa própria satisfação, e seu trabalho tender para que vivamos bem, e com alegria, como recomenda a Sagrada Escritura [Eclesiastes 3,12: “Então compreendi que não existe para o homem nada melhor do que se alegrar e agir bem durante a vida”]. Todas as opiniões propõem que o prazer é a meta da vida,mas diferem no que concerne aos meios de atingir o alvo.
(...) A meta de nossa existência é a morte; é este o nosso objetivo fatal. Se nos apavora, como poderemos dar um passo à frente sem tremer? O remédio do homem vulgar consiste em não pensar na morte. Mas quanta estupidez será precisa para uma tal cegueira? “Por que não coloca o freio no rabo do asno, já que meteu na cabeça andar de costas?” (Lucrécio). Não há como estranhar que caia tantas vezes na armadilha. As pessoas se apavoram simplesmente com lhe ouvir o nome: a morte! E persignam-se como se ouvissem falar no diabo. E,como ela é mencionada nos testamentos, só resolvem fazer o seu quando o médico os condenou.
(...) Não sabemos onde a morte nos aguarda, esperemo-la em toda parte. Meditar sobre a morte é meditar sobre a liberdade; quem aprendeu a morrer desaprendeu a servir; nenhum mal atingirá quem na existência compreendeu que a privação da vida não é um mal; saber morrer nos exime de toda sujeição e constrangimento.Paulo Emílio, ao ir receber as honras do triunfo, respondia ao mensageiro enviado por esse infeliz rei da Macedônia, seu prisioneiro, a fim de suplicar-lhe que não o incluísse em seu séquito: “Que o solicite a si próprio”.
(...) Frequentemente indaguei de mim mesmo por que, na guerra, a perspectiva ou a presença da morte, nossa ou de outrem, nos impressiona muito menos do que em nossos lares. Se assim não fosse, um exército se comporia unicamente de médicos e de chorões. Estranho igualmente que a morte, em sendo a mesma para todos, a acolham com mais calma os camponeses e o povo miúdo que os outros. Creio, em verdade, que são esses semblantes de circunstância e esse aparato lúgubre com que a cercam, que nos impressionam mais do que ela própria. Quando ela se aproxima, há uma modificação total em nossa vida cotidiana: mães, mulheres e crianças gritam e se lamentam.

Montaigne, De como filosofar é aprender a morrer, Ensaios, disponível em: https://filosoficabiblioteca.files.wordpress.com/2013/10/124035606-michel-de-montaigne-de-como-filosofar-e-aprender-a-morrer.pdf


Texto 5
A morte é o gênio inspirador, a musa da filosofia... Sem ela, dificilmente ter-se-ia filosofado.
Nascimento e morte pertencem igualmente à vida, e formam um contrapeso; um é a condição da outra; são as duas extremidades, os dois pólos de todas as manifestações da vida. É o que a mitologia hindu, a mais sábia de todas as mitologias, exprime por um símbolo, dando como tributo a Shiva, o Deus da Destruição, um colar de caveiras, e o Lingam, órgão e símbolo da geração; porque o amor é a compensação da morte, o seu correlativo essencial; neutralizam-se, suprimem-se um ao outro. - Por isso os gregos e os romanos adornavam esses preciosos sarcófagos que ainda hoje se veem, com baixos relevos figurando festas, danças, casamentos, caçadas, combates de animais, bacanais, numa palavra, imagens da vida mais alegre, mais animada, mais intensa, até mesmo grupos voluptuosos, sátiros unidos a cabras. O seu fim tendia evidentemente a preocupar o espírito da maneira mais sensível com o contraste da morte do homem que se chora, encerrado no túmulo, e da vida imortal da natureza.
Schopenhauer, Arthur, As dores do mundo, edipro.  

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