sexta-feira, 17 de julho de 2020

Filosofia em Tempo de Pandemia - A peste (Albert Camus) - Parte 3

Trechos selecionados 

Até então, a peste tinha feito muito mais vítimas nos subúrbios, mais povoados e menos confortáveis, que no centro da cidade. Mas ela pareceu de repente aproximar-se e instalar-se também nos bairros comerciais. Os habitantes acusavam o vento de transportar os germes da infecção. (...) Fosse como fosse, porém, os bairros do centro sabiam que tinha chegado a sua vez ao ouvirem vibrar muito perto deles, na noite, e cada vez com mais frequência, a sirene das ambulâncias, que fazia ressoar sob as suas janelas o apelo monótono e desapaixonado da peste. 

Até no próprio interior da cidade, teve-se a ideia de isolar certos bairros particularmente castigados e de só autorizar a saída dos homens cujos serviços eram indispensáveis. Os que ali viviam até então não puderam deixar de considerar essa medida como uma peça que lhes havia sido pregada especialmente e, em todo caso, por contraste, pensavam nos habitantes dos outros bairros como homens livres. 

(...) Mais ou menos nessa época, houve também uma recrudescência de incêndios, sobretudo nos bairros residenciais à entrada oeste da cidade. As informações revelaram que se tratava de pessoas egressas da quarentena e que, enlouquecidas pelo luto e pela desgraça, ateavam fogo às suas casas na ilusão de que faziam morrer a peste. (...) E, sem dúvida, não era a pena de prisão que fazia recuar esses infelizes, mas a certeza, comum a todos os habitantes, de que uma pena de prisão equivalia a uma pena de morte, em consequência da excessiva mortalidade verificada na penitenciária municipal. Evidentemente, essa crença não era destituída de fundamento: por motivos óbvios, parecia que a peste se empenhara em atacar particularmente aqueles que tinham adquirido o hábito de viver em grupo - soldados, religiosos e prisioneiros.

(...) Porque é efetivamente necessário falar dos enterros e o narrador pede desculpas. Sente naturalmente a crítica que lhe poderia ser feita a este respeito, mas a única justificativa é que houve enterros durante toda essa época que, de certo modo, obrigaram-no, como obrigaram a todos os nossos concidadãos, a preocupar-se com enterros. Não é, em todo caso, que ele goste desse tipo de cerimônias, preferindo, pelo contrário a sociedade dos vivos e, para dar um exemplo, os banhos de mar.

(...) Pois bem, o que caracterizava no início as nossas cerimônias era a rapidez! Todas as formalidades haviam sido simplificadas e, de uma maneira geral, a pompa fúnebre fora suprimida. Os doentes morriam longe da família e tinham sido proibidos os velórios rituais, de modo que os que morriam à tardinha passavam a noite sós e os que morriam de dia eram enterrados sem demora. Naturalmente, a família era avisada, mas, na maior parte dos casos, não podia deslocar-se por estar de quarentena, se tinha vivido perto do doente. No caso de a família não morar com o defunto, apresentava-se à hora indicada, que era a da partida para o cemitério, depois de o corpo ter sido lavado e colocado no caixão.

(...) E, sem dúvida, no princípio, pelo menos, é evidente que o sentimento natural das famílias se ofendia. Em tempo de peste, porém, não é possível levar em conta semelhantes considerações: tinha-se sacrificado tudo à eficácia. Além disso, se a princípio, o moral da população se ressentira com essas práticas, porque o desejo de ser enterrado decentemente é muito mais profundo do que se supõe, pouco depois, por felicidade, o problema do abastecimento tornou-se delicado e o interesse dos habitantes migrou para preocupações mais imediatas. Absorvidos pelas filas que era preciso fazer, pelas providências a tomar pelas formalidades a cumprir caso quisessem comer, as pessoas não tiveram tempo de se ocupar da maneira como se morria à sua volta e como elas próprias morreriam um dia. (...) E tudo teria corrido bem, se a epidemia não tivesse alastrado, como já vimos.

Pois os caixões escassearam, faltou pano para as mortalhas e lugar nos cemitérios. Foi necessário tomar algumas precauções. O mais simples, e ainda por razões de eficácia, pareceu agrupar as cerimônias e, quando a coisa era necessária, multiplicar as viagens entre o hospital e o cemitério. (...) No cemitério, eram esvaziados, os corpos cor de ferro eram colocados em macas e esperavam num local preparado para esse fim. Os caixões eram regados com uma solução antisséptica e levados novamente para o hospital, onde a operação recomeçava tantas vezes quantas fossem necessárias.


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