sexta-feira, 24 de julho de 2020

Filosofia em Tempos de Pandemia - A peste (Albert Camus) - Parte 4

trechos selecionados

(...) por volta do fim do mês, as autoridades eclesiásticas da nossa cidade decidiram lutar contra a peste pelos seus próprios meios, organizando uma semana de preces coletivas. Essas manifestações da piedade pública devia terminar no domingo com uma missa solene, sob a invocação de São Roque, o santo atacado pela peste. Nessa ocasião, tinham dado a palavra ao padre Paneloux.

(...)

A semana de preces foi seguida por um público numeroso. Não é que em tempos normais os habitantes de Orã sejam particularmente piedosos. No domingo de manhã, por exemplo, os banhos de mar fazem séria concorrência à missa. Não é também que uma súbita conversão os tivesse iluminado. Mas, por um lado, com a cidade fechada e porto interditado, os banhos não eram possíveis, e, por outro lado, eles se encontravam num estado de espírito bem singular em que, sem terem admitido no fundo de si próprios os acontecimentos surpreendentes que os atingiam, sentiam efetivamente que algo, obviamente, mudara. No entanto, muitos continuavam a esperar que a epidemia cessasse e que eles fossem poupados, com as suas famílias. Por consequência, não se sentiam ainda obrigados a nada. A peste nada mais era para eles do que uma visita desagradável que havia de partir um dia. Assustados, mas não desesperados, não chegara ainda o momento em que a peste lhes surgiria como a própria forma da sua vida em que esqueceriam a existência que até então tinham podido levar. Em suma, estavam na expectativa. No que se refere à religião, como a muitos outros problemas, a peste tinha-lhes dado uma singular atitude de espírito, tão afastada da indiferença com da paixão, que podia definir-se pela palavra "objetividade". a maior parte dos que seguiram a semana de preces poderia ter feito sua a frase que um dos fiéis havia proferido diante do Dr. Rieux: "De qualquer maneira, mal não pode fazer." O próprio Tarrou, depois de ter anotado nos seus cadernos que os chineses, em situação semelhante, vão tocar tambor diante do gênio da peste, observava que era absolutamente impossível saber se, na realidade, o instrumento se mostrava mais eficaz que as medidas profiláticas.

(...)

Um cheiro de incenso e de umidade flutuava na catedral quando o padre Paneloux subiu ao púlpito. (...) Tinha uma voz forte, apaixonada, que ia longe, e, quando atacou a assistência com uma única frase veemente e martelada, "Irmãos, caístes em desgraça, irmãos, vós o merecestes", a assistência se agitou.

(...) Logo depois dessa frase, Paneloux citou o texto do Êxodo relativo à peste no Egito e disse: " A primeira vez que este flagelo aparece na história é para atacar os inimigos de Deus. O faraó opõe-se aos desígnios eternos e a peste o faz então cair de joelhos. Desde o princípio de toda a história, o flagelo de Deus põe a seus pés os orgulhosos e os cegos. Meditai sobre isso e caí de joelhos."

(...)Paneloux endireitou-se então, respirou profundamente e continuou, num tom mais veemente: "Se hoje a peste vos olha, é porque chegou o momento de refletir. Os justos não podem temê-la, mas os maus têm razão para tremer. Na imensa granja do Universo, o flagelo implacável baterá o trigo humano até que o joio se separe do grão. Haverá mais joio que grão, mais chamados que eleitos e esta desgraça não foi desejada por Deus. Por longo tempo, este mundo compactuou com o mal, repousando na misericórdia divina. Bastava arrepender-se, tudo era permitido. E para se arrependerem todos se sentiam fortes. Chegado o momento, o arrependimento viria por certo. Até lá, o mais fácil era deixar-se levar; a misericórdia divina faria o resto. Pois bem! Isso não podia durar. Deus, que durante tanto tempo baixou sobre os homens desta cidade o seu rosto de piedade, cansado de esperar, desiludido na sua eterna esperança, acaba de afastar o olhar. Privados da luz de Deus, eis-nos por muito tempo nas trevas da peste!"
                                                                                                             Camus, Albert, A peste, Record.

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