sexta-feira, 24 de julho de 2020

Filosofia em Tempos de Pandemia - A peste (Albert Camus) - Parte 5

Trechos selecionados

Quanto a Castel, no dia em que veio anunciar a Rieux que o soro estava pronto e depois de terem decidido fazer a primeira experiência no garoto do Sr. Othon, que acabavam de remover para o hospital e cujo caso parecia desesperador a Rieux, este comunicava ao velho amigo as últimas estatísticas quando reparou que seu interlocutor adormecera profundamente na cadeira. E, diante desse rosto em que habitualmente um ar de ternura e de ironia punha uma perpétua juventude e que agora, subitamente abandonado, com um filete de saliva a unir-lhe os lábios entreabertos, deixava ver os estragos e a velhice, Rieux sentiu um aperto na garganta.
Era por tais fraquezas que Rieux podia julgar o seu cansaço. A sensibilidade lhe fugia. Amarrada a maior parte do tempo, endurecida e seca, irrompia de vez em quando e abandonava-o a emoções que já não conseguia dominar. Sua única defesa era refugiar-se nesse endurecimento e apertar o nó que nele se formara. Sabia efetivamente que essa era a melhor maneira de continuar. Quanto ao resto, não tinha muitas ilusões e o seu cansaço tirava-lhe as que ainda conservava. Porque sabia que, durante um período cujo término não conseguia vislumbrar, o seu papel já não era o de curar. O seu papel era diagnosticar. Descobrir, ver, descrever, registrar, depois condenar, essa era a sua tarefa. Esposas agarravam-lhe as mãos e gritavam: "Doutor, dê-lhe a vida!" Mas ele não estava ali para dar vida, estava ali para ordenar o isolamento. De que servia o ódio que lia, então, nas fisionomias? "O senhor não tem coração", tinham-lhe dito um dia. Sim, ele tinha um coração. Servia-lhe para suportar as vinte horas por dia em que via morrer homens que haviam sido feitos para viver. Servia-lhe para recomeçar todos os dias. De agora em diante, o coração mal dava para isso. Como esse coração seria suficiente para dar vida?
Não, não eram socorros que ele distribuía durante todo o dia, e sim informações. (...) Antes da peste, recebiam-no como um salvador. Ele ia consertar tudo com três pílulas e uma seringa, e apertavam-lhe o braço ao conduzi-lo pelos corredores. Era lisonjeiro, mas perigoso. Agora, pelo contrário, apresentava-se acompanhado de soldados, era necessário dar coronhadas para que a família se decidisse a abrir a porta. Teriam desejado arrastá-lo e arrastar toda a humanidade com eles para a morte.
(...) Mas o efeito mais perigoso do esgotamento que vencia, pouco a pouco, todos os que continuavam a luta contra o flagelo não estava nessa indiferença aos acontecimentos exteriores e às emoções dos outros, e sim na negligência a que haviam chegado. Porque tinham então tendência a evitar todos os gestos que não fossem absolutamente indispensáveis e que lhes pareciam sempre acima das suas forças. Foi assim que esses homens chegaram a desprezar cada vez mais as regras de higiene que tinham codificado, a esquecer algumas das desinfecções que deviam praticar contra o contágio, para junto de doentes atacados de peste pulmonar, porque, alertados no último momento de que deviam dirigir-se a casas infectadas, tinha-lhes parecido de antemão exaustivo voltarem a qualquer local para fazerem as instilações necessárias. Nisso residia o verdadeiro perigo, pois era a própria luta contra a peste que os tornava então mais vulneráveis à peste. Apostavam, em suma, no acaso e o caso não pertence a ninguém.


Filosofia em Tempos de Pandemia - A peste (Albert Camus) - Parte 1

Apresentando o livro e o autor

O livro A peste, escrito em 1947, nos traz as anotações de um cronista a respeito dos "curiosos acontecimentos" que teriam se dado na cidade de Orã, por volta dos anos 1940. Segundo o cronista, Orã é "uma cidade comum" e "feia", "não passando de uma prefeitura francesa na costa argelina", à primeira vista igual a muitas outras vilas. No entanto, o clima e o relevo local fazem da cidade um lugar peculiar: "um lugar neutro".
O romance A peste pode ser lido como um relato sobre uma cidade assolada por uma epidemia ou como uma alegoria para acontecimentos históricos que deixaram marcas profundas na humanidade: uma referência à França ocupada na Segunda Guerra Mundial pelo Nazismo.
Albert Camus, o autor, foi jornalista, filósofo e escritor, de origem argelina. Prêmio Nobel de Literatura em 1957, é considerado um dos grandes autores do século XX e principal representante de uma corrente de pensamento conhecida como absurdismo.

O contexto da pandemia do novo coronavírus fez com que muitas pessoas se voltassem para essa que é uma das principais obras de Camus, A peste. Os textos selecionados neste blog funcionarão como provocações e como mote para que possamos, diante dos acontecimentos desse ano de 2020, nos sensibilizar, problematizar a realidade que nos cerca e, finalmente, filosofar! Vamos nessa?

A cidade de Orã e os primeiros casos - trechos selecionados

(...) Uma forma conveniente de travar conhecimento com uma cidade é procurar saber como se trabalha, como se ama e como se morre. Na nossa pequena cidade, talvez por efeito do clima, tudo se faz ao mesmo tempo, com o mesmo ar frenético e distante. Isto é: aqui as pessoas se entediam e se dedicam a criar hábitos. Nossos concidadãos trabalham muito, mas apenas para enriquecer. Interessam-se sobretudo pelo comércio e ocupam-se, em primeiro lugar, segundo sua própria expressão, de fazer negócios.  (...) Dir-se-á, sem dúvida, que nada disso é exclusivo de nossa cidade e que, em suma, todos os nossos contemporâneos são assim. Nada mais natural, hoje em dia, do que ver as pessoas trabalharem de manhã à noite e optarem, em seguida, por desperdiçar no jogo, nos cafés e em tagarelices o tempo que lhes resta para viver. Mas há cidades e países em que as pessoas, de vez em quando, suspeitam que exista algo mais. Isso, em geral, não muda a vida deles. Simplesmente houve a suspeita, o que já é alguma coisa. Orã, ao contrário, é uma cidade aparentemente moderna. Não é necessário, portanto, definir a maneira como se ama entre nós. Os homens e as mulheres ou se devoram rapidamente, no que se convencionou chamar de ato de amor, ou se entregam ao hábito de uma longa vida a dois. Tampouco isso é original. Em Orã, como no resto do mundo, por falta de tempo e de reflexão, somos obrigados a amar sem saber.
O que é mais original na nossa cidade é a dificuldade que se pode ter para morrer. Dificuldade, aliás, não é o termo exato: seria mais certo falar em desconforto. Nunca é agradável ficar doente, mas há cidades e países que nos amparam na doença e onde podemos, de certo modo, nos entregar. O doente precisa de carinho, ter algo em que se apoiar. Isso é muito natural. Em Orã, porém, os excessos do clima, a importância dos negócios, a insignificância do cenário, a rapidez do crepúsculo e a qualidade dos prazeres, tudo exige boa saúde. Lá o doente fica muito só. O que dizer então daquele que vai morrer, apanhado na armadilha por detrás das paredes crepitantes de calor, enquanto, no mesmo minuto, toda uma população, ao telefone ou nos cafés, fala de câmbio, de notas fiscais ou de desconto? Compreende-se o que há de desconfortável na morte, mesmo nos dias de hoje, quando ela chega assim a um lugar seco.
(...) O importante é ressaltar o aspecto banal da cidade e da vida. Mas os dias passam sem dificuldades, desde que se tenha criado hábitos. Partindo-se do princípio que  a nossa cidade favorece justamente os hábitos, pode-se dizer que tudo vai bem. Sob esse aspecto, sem dúvida, a vida não é muito emocionante. Ao menos desconhece-se a desordem. E a nossa população franca, simpática e ativa sempre despertou no viajante uma estima considerável. Esta cidade sem pitoresco, sem vegetação e sem alma acaba parecendo repousante e afinal adormece-se nela.
(...) Agora podemos admitir sem pesar que nada podia fazer nossos concidadãos preverem os incidentes que se deram na primavera desse ano e que foram, como compreendemos depois, os primeiros sinais dos graves acontecimentos cuja crônica nos propusemos fazer aqui.

(...)O Dr. Rieux sabia alguma coisa a esse respeito. Isolado o corpo do porteiro, telefonara a Richard para interrogá-lo sobre essas febres inguinais.
- Não compreendo nada - respondeu Richard. - Dois mortos, um em 48 horas, o outro, em três dias. Eu tinha deixado o último, uma manhã, com todos os indícios de convalescença.
- Avise-me se houver outros casos - disse Rieux.
Telefonou ainda para outros médicos. Essa sindicância mostrou uns vinte casos semelhantes em alguns dias. Quase todos tinham sido fatais. Pediu então a Richard, secretário do Sindicato dos Médicos de Orã, o isolamento dos novos doentes.
- Mas não posso fazer nada - respondeu Richard. - Essas providências são com a Prefeitura. Além disso, quem lhe diz que há risco de contágio?
- Ninguém, mas os sintomas são inquietantes.
Richard, entretanto, achava que não tinha "competência". Tudo o que podia fazer era falar com o prefeito.
Porém, enquanto se falava, perdia-se tempo.

Camus, Albert, A peste, Record.


Filosofia em Tempos de Pandemia - A peste (Albert Camus) - Parte 4

trechos selecionados

(...) por volta do fim do mês, as autoridades eclesiásticas da nossa cidade decidiram lutar contra a peste pelos seus próprios meios, organizando uma semana de preces coletivas. Essas manifestações da piedade pública devia terminar no domingo com uma missa solene, sob a invocação de São Roque, o santo atacado pela peste. Nessa ocasião, tinham dado a palavra ao padre Paneloux.

(...)

A semana de preces foi seguida por um público numeroso. Não é que em tempos normais os habitantes de Orã sejam particularmente piedosos. No domingo de manhã, por exemplo, os banhos de mar fazem séria concorrência à missa. Não é também que uma súbita conversão os tivesse iluminado. Mas, por um lado, com a cidade fechada e porto interditado, os banhos não eram possíveis, e, por outro lado, eles se encontravam num estado de espírito bem singular em que, sem terem admitido no fundo de si próprios os acontecimentos surpreendentes que os atingiam, sentiam efetivamente que algo, obviamente, mudara. No entanto, muitos continuavam a esperar que a epidemia cessasse e que eles fossem poupados, com as suas famílias. Por consequência, não se sentiam ainda obrigados a nada. A peste nada mais era para eles do que uma visita desagradável que havia de partir um dia. Assustados, mas não desesperados, não chegara ainda o momento em que a peste lhes surgiria como a própria forma da sua vida em que esqueceriam a existência que até então tinham podido levar. Em suma, estavam na expectativa. No que se refere à religião, como a muitos outros problemas, a peste tinha-lhes dado uma singular atitude de espírito, tão afastada da indiferença com da paixão, que podia definir-se pela palavra "objetividade". a maior parte dos que seguiram a semana de preces poderia ter feito sua a frase que um dos fiéis havia proferido diante do Dr. Rieux: "De qualquer maneira, mal não pode fazer." O próprio Tarrou, depois de ter anotado nos seus cadernos que os chineses, em situação semelhante, vão tocar tambor diante do gênio da peste, observava que era absolutamente impossível saber se, na realidade, o instrumento se mostrava mais eficaz que as medidas profiláticas.

(...)

Um cheiro de incenso e de umidade flutuava na catedral quando o padre Paneloux subiu ao púlpito. (...) Tinha uma voz forte, apaixonada, que ia longe, e, quando atacou a assistência com uma única frase veemente e martelada, "Irmãos, caístes em desgraça, irmãos, vós o merecestes", a assistência se agitou.

(...) Logo depois dessa frase, Paneloux citou o texto do Êxodo relativo à peste no Egito e disse: " A primeira vez que este flagelo aparece na história é para atacar os inimigos de Deus. O faraó opõe-se aos desígnios eternos e a peste o faz então cair de joelhos. Desde o princípio de toda a história, o flagelo de Deus põe a seus pés os orgulhosos e os cegos. Meditai sobre isso e caí de joelhos."

(...)Paneloux endireitou-se então, respirou profundamente e continuou, num tom mais veemente: "Se hoje a peste vos olha, é porque chegou o momento de refletir. Os justos não podem temê-la, mas os maus têm razão para tremer. Na imensa granja do Universo, o flagelo implacável baterá o trigo humano até que o joio se separe do grão. Haverá mais joio que grão, mais chamados que eleitos e esta desgraça não foi desejada por Deus. Por longo tempo, este mundo compactuou com o mal, repousando na misericórdia divina. Bastava arrepender-se, tudo era permitido. E para se arrependerem todos se sentiam fortes. Chegado o momento, o arrependimento viria por certo. Até lá, o mais fácil era deixar-se levar; a misericórdia divina faria o resto. Pois bem! Isso não podia durar. Deus, que durante tanto tempo baixou sobre os homens desta cidade o seu rosto de piedade, cansado de esperar, desiludido na sua eterna esperança, acaba de afastar o olhar. Privados da luz de Deus, eis-nos por muito tempo nas trevas da peste!"
                                                                                                             Camus, Albert, A peste, Record.

quinta-feira, 23 de julho de 2020

O Príncipe - Maquiavel

Textos selecionados

A escolha dos ministros por um príncipe não tem pouca importância: os ministros serão bons ou maus, de acordo com a prudência que o príncipe demonstrar. A primeira impressão que se tem de um governante, e da sua inteligência, é dada pelos homens que o cercam. Quando estes são competentes e leais, pode-se sempre considerar o príncipe sábio, pois foi capaz de reconhecer a capacidade e de manter a fidelidade. Mas quando a situação é oposta, pode-se sempre fazer dele juízo desfavorável, porque seu primeiro erro terá sido cometido ao escolher os assessores.
(...)
Há três tipos diferentes de mente: um compreende as coisas sem ajuda; o segundo compreende as coisas demonstradas por outrem; o terceiro, nada consegue compreender, nem só, nem com a assistência dos outros. A primeira espécie é a mais excelente; a segunda é também muito boa, mas a terceira é inútil.

(...)
O príncipe prudente tomará, portanto, um terceiro caminho, escolhendo como conselheiros homens de sabedoria, e dando-lhes inteira liberdade para falar a verdade, mas só quando interrogados, e apenas sobre o que lhes for perguntado. O príncipe pedirá sua opinião sobre tudo, deliberando depois sozinho, do seu próprio modo, conduzindo-se diante das assembleias de conselheiros, e com cada um deles, de modo tal que todos vejam que quanto maior a liberdade com que se fale, maior aceitação se terá. Mas o príncipe não ouvirá ninguém mais; agirá com deliberação, mantendo determinadamente suas decisões. Quem fizer outra coisa ou agirá precipitadamente, devido aos aduladores, ou mudará muitas vezes de posição, por causa da variedade das opiniões ouvidas - e em qualquer caso será pouco respeitado.

(...)
Não ignoro a opinião antiga e muito difundida de que o que o que acontece no mundo é decidido por Deus e pelo acaso; que a prudência dos homens não pode alterar os acontecimentos; que, ao contrário, não há como remediar as coisas. Talvez por isso se pense ser inútil trabalhar muito: será melhor deixar que o acaso decida. Essa opinião é muito aceita em nossos dias, devido às grandes transformações ocorridas, e que ocorrem diariamente, as quais escapam à conjectura humana. Quando reflito sobre ela, às vezes eu próprio me inclino a aceitá-la em parte.
Não obstante , para não ignorar inteiramente nosso livre arbítrio, creio que se pode aceitar que a sorte decide a metade dos nossos atos, mas que nos permite controle sobre a outra metade, aproximadamente. Compararia a sorte a um rio impetuoso que, quando turbulento, inunda a planície, derruba casas e edifícios, remove terra de um lugar para depositá-la em outro. Todos fogem diante da sua fúria, tudo cede sem poder detê-la. Contudo, embora tal seja sua natureza, quando as águas correm quietamente é possível construir defesas contra elas, diques e barragens, de modo que , quando voltem a crescer, sejam desviadas por um canal, para que seu ímpeto seja menos selvagem e maléfico.
O mesmo acontece com a sorte, que mostra todo o seu poder quando nenhuma providência foi tomada para resisti-la, dirigindo então sua fúria contra os pontos onde sabe que não há dique ou barragem que a detenha.
(...)
Restringindo-me contudo a casos mais específicos, observarei que o mesmo príncipe pode um dia ser bafejado pela boa sorte, e no dia seguinte estar arruinado, sem que aparentemente tenha mudado de caráter, ou sob qualquer outro aspecto. Creio que isto se deve em primeiro lugar às razões que já discutimos amplamente: isto é, o príncipe que baseia seu poder inteiramente na sorte se arruína quando esta muda. Acredito também que é feliz quem age de acordo com as necessidades do seu tempo, e da mesma forma é infeliz quem age opondo-se ao que o seu tempo exige.
(...)
Vê-se às vezes dois homens prudentes, dos quais um só alcança seus objetivos; dois outros que têm igual êxito usando métodos diferentes - um deles cauteloso, ou outro impetuoso -, o que é provocado pela natureza dos tempos, que se ajusta ou não aos seus procedimentos. Disso resulta que duas pessoas, agindo de forma diversa, obtêm o mesmo efeito; o que entre duas outras, agindo da mesma forma, uma só alcança êxito.

Maquiavel, Nicolau, O Príncipe, Editora Universidade de Brasília.

quarta-feira, 22 de julho de 2020

Filosofia em Tempo de Pandemia - A peste (Albert Camus) - Parte 2

 Trechos selecionados 
A palavra "peste" acaba de ser pronunciada pela primeira vez. Neste ponto da narrativa, com Bernard Rieux atrás da janela, permitir-se-á ao narrador que justifique a incerteza e o espanto do médico, já que, com algumas variações, sua reação foi a da maior parte dos nossos concidadãos. Os flagelos, na verdade, são uma coisa comum, mas é difícil acreditar neles quando se abatem sobre nós. Houve no mundo igual número de pestes e de guerras. E contudo as pestes, como as guerras, encontram sempre as pessoas igualmente desprevenidas. Rieux estava desprevenido, assim como os nossos concidadãos; é necessário compreender assim as suas hesitações. Por isso é preciso compreender, também, que ele estivesse dividido entre a inquietação e a confiança. Quando estoura uma guerra, as pessoas dizem: "Não vai durar muito, seria estúpido." Sem dúvida, uma guerra é uma tolice, o que não impede de durar. A tolice insiste sempre, e nós a compreenderíamos se não pensássemos sempre em nós. Nossos concidadãos, a esse respeito, eram como todo mundo: pensavam em si próprios. Em outras palavras, eram humanistas: não acreditavam nos flagelos. O flagelo não está à altura do homem; diz-se então que o flagelo é irreal, que é um sonho mau que vai passar. Mas nem sempre ele passa e, de sonho mau em sonho mau que vai, são homens que passam e os humanistas em primeiro lugar, pois não tomaram as suas precauções. Nossos concidadãos não eram mais culpados que os outros. Apenas se esqueciam de ser modestos e pensavam que tudo ainda era possível para eles, o que pressupunha que os flagelos eram impossíveis. Continuavam a fazer negócios, preparavam viagens e tinham opiniões. Como poderiam ter pensado na peste que suprime o futuro, os deslocamentos e as discussões? Julgavam-se livre e jamais alguém será livre enquanto houver flagelos.

(...)
No dia em que o número de mortos atingiu de novo trinta, Bernard Rieux olhava o telegrama oficial que o prefeito lhe estendera exclamando: "Estão com medo!" O telegrama dizia: "Declarem o estado de peste. Fechem a cidade."
A partir desse momento, pode-se dizer que a peste se tornou um problema comum a todos nós. Até então, apesar da surpresa e da inquietação trazidas por esses acontecimentos singulares, cada um dos nossos concidadãos seguira com suas ocupações conforme pudera, no seu lugar habitual. E, sem dúvida, isso devia continuar. No entanto, uma vez fechadas as portas, deram-se conta de que estavam todos, até o próprio narrador, metidos no mesmo barco e que era necessário ajeitar-se. Foi assim, por exemplo, que, a partir das primeiras semanas, um sentimento tão individual quanto o da separação de um ente querido se tornou, subitamente, o de todo um povo e, com o medo, o principal sofrimento desse longo período de exílio. 

Na verdade, uma das consequências mais importantes do fechamento das portas foi a súbita separação em que foram colocados seres que não estavam preparados para isso. Mães e filhos, esposos, amantes que tinham julgado proceder, alguns dias antes, a uma separação temporária, que se tinham beijado na plataforma da nossa estação, com duas ou três recomendações, certos de se reverem dali a alguns dias ou algumas semanas, mergulhados na estúpida confiança humana, momentaneamente distraídos de suas ocupações habituais por essa partida, viram-se de repente, irremediavelmente afastados, impedidos de se encontrarem ou de se comunicarem.

(...)Assim, a primeira coisa que a peste trouxe aos nossos concidadãos foi o exílio. E o narrador está convencido de que pode escrever aqui, em nome de todos, o que ele próprio sentiu então, já que o sentiu ao mesmo tempo que muitos dos nossos concidadãos.

(...) Apesar desses espetáculos inéditos, parece que os nossos concidadãos tinham dificuldade em compreender o que lhes acontecia. Havia os sentimentos comuns, como a separação ou o medo, mas continuavam a colocar em primeiro plano as preocupações pessoais. Ninguém aceitara ainda verdadeiramente a doença. A maior parte era sobretudo sensível ao que perturbava os seus hábitos ou atingia os seus interesses. Impacientavam-se, irritavam-se e esses não são sentimentos que se possa contrapor à peste. A primeira reação, por exemplo, era culpar as autoridades. A resposta do prefeito diante das críticas de que a imprensa fazia eco ("Não se poderia propor medidas mais flexíveis?") foi bastante imprevista. Até então, nem os jornais nem a Agência Ransdoc tinham recebido qualquer estatística oficial sobre a doença. O prefeito passou a comunicá-la diariamente à agência, pedindo-lhe que publicasse uma nota semanal.

Mesmo nesse caso, contudo, a reação do público não foi imediata. Na verdade, o anúncio de que a terceira semana de peste somava 302 mortos não falava à imaginação. Por um lado, talvez nem todos tivessem morrido de peste. Por outro lado, ninguém na cidade sabia quantas pessoas morriam por semana em tempos normais. A cidade tinha 200 mil habitantes. Ignorava-se se essa proporção de óbitos era normal. É esse o gênero de detalhes com que nunca nos preocupamos, apesar do interesse evidente que apresentam. Ao público faltavam, de algum modo, ponto de referência. Foi só com o tempo, ao constatar o aumento das mortes, que a opinião pública tomou consciência da verdade. Com efeito, a quinta semana deixou 321 mortos e sexta, 345. O aumento, pelo menos, era significativo. Mas não era bastante forte para impedir que nossos concidadãos, em meio à sua inquietação, tivessem a impressão de que se tratava de um acidente, sem dúvida desagradável, mas, apesar de tudo, temporário.

Continuavam assim a circular nas ruas e a sentar-se às mesas dos cafés. (...)


flagelo: punição física, castigo, tortura; tormento, peste, calamidade pública;

segunda-feira, 20 de julho de 2020

O que a filosofia tem a nos dizer sobre a morte

Trechos selecionados

Texto 1
"Façamos mais esta reflexão: há grande esperança de que isto seja um bem. Morrer é uma destas duas coisas: ou o morto é igual a nada, e não sente nenhuma sensação de coisa nenhuma; ou, então,  como se costuma dizer, trata-se duma mudança, uma emigração da alma, do lugar deste mundo para outro lugar. Se não há nenhuma sensação, se é como um sono em que o adormecido nada vê nem sonha, que maravilhosa vantagem seria a morte!
Bem posso imaginar que, se a gente devesse identificar uma noite em que tivesse dormido tão profundamente que nem mesmo sonhasse e, contrapondo a essa as demais noites e dias de sua vida, pensar e dizer quantos dias e noites de sua existência viveu melhor e mais agradavelmente do que naquela noite, bem posso imaginar que, já não digo um particular, mas o próprio rei da Pérsia acharia fáceis de enumerar essas noite entre as outras noites e dias. Logo, se a morte é isto, digo que é uma vantagem, porque, assim sendo, toda a duração do tempo se apresenta como nada mais que uma noite. Se, do outro lado, a morte é como a mudança daqui para outro lugar e está certa a tradição de que lá estão todos os mortos, que maior bem haveria que esse, senhores juízes?
Se, em chegando no Hades, livre dessas pessoas que se intitulam juízes, a gente vai encontrar os verdadeiros juízes que, segundo consta, lá distribuem justiça (...), não valeria a pena a viagem? (...) Os de lá são mais felizes do que os de cá, entre outros motivos, por serem imortais pelo resto do tempo, se a tradição está certa.

                                                    Platão, Apologia de Sócrates, Nova Cultural.

Texto 2
Acostuma-te à ideia de que a morte para nós não é nada, visto que todo bem e todo mal residem nas sensações, e a morte é justamente a privação das sensações. A consciência clara de que a morte não significa nada para nós proporciona a fruição da vida efêmera, sem querer acrescentar-lhe tempo infinito e eliminado o desejo de imortalidade.
Não existe nada de terrível na vida para quem está perfeitamente convencido de que não há nada de terrível em deixar de viver. É tolo, portanto, quem diz ter medo da mote, não porque a chegada desta lhe trará sofrimento, mas porque o aflige a própria espera: aquilo que não nos perturba quando presente não deveria afligir-nos enquanto está sendo esperado.
Então, o mais terrível de todos os males, a morte, não significa nada para nós, justamente porque, quando estamos vivos, é a morte que não está presente; ao contrário, quando a morte está presente, nós é que não estamos. A morte, portanto, não é nada, nem para os vivos, nem para os mortos, já que para aqueles ela não existe, ao passo que estes não estão mais aqui. E, no entanto, a maioria das pessoas ora foge da morte como se fosse o maior dos males, ora a deseja como descanso dos males da vida.
O sábio, porém, nem desdenha viver, nem teme deixar de viver; para ele, viver não  um fardo e não viver não é um mal.
Assim como opta pela comida mais saborosa e não pela mais abundante, do mesmo modo ele colhe os doces frutos de um tempo bem vivido, ainda que breve.
Quem aconselha o jovem a viver bem e o velho a morrer bem não passa de um tolo, não só pelo que a vida tem de agradável para ambos, mas também porque se deve ter exatamente o mesmo cuidado em honestamente viver e em honestamente morrer.
Epicuro, Carta sobre a Felicidade, Editora Unesp

Texto 3
Lamento muito pela morte do teu amigo Flaco, porém não quero que tu sofras mais do que deves. (...) Morto um amigo, os olhos não devem ficar nem secos nem inundados; devem lacrimejar, não chorar copiosamente.
(...) "Como?", perguntais. "Devereis esquecer um amigo?" Será breve a memória dele junto a ti se ela ficar junto com a dor; algo fortuito a mudará em riso.
(...) Façamos com que seja alegra a memória dos nossos mortos. (...) Como costumava dizer o nosso Átalo, "a memória dos amigos falecidos é como alguns frutos que são suavemente ásperos, como o vinho muito envelhecido cujo próprio amargor nos deleita; porém, quando passou um espaço de tempo, toda angústia se extingue e nos vem um prazer puro".
(...) Eu te escrevo essas coisas, eu, que chorei tão imoderadamente o meu caríssimo Aneu Sereno, eu, que de modo algum desejava, estou entre os exemplos daqueles a quem a dor venceu. Hoje, porém, condeno o meu comportamento e compreendo que a maior causa do meu pranto foi nunca ter pensado que ele poderia morrer antes de mim. Esta é a única coisa que me ocorria: que ele era mais jovem que eu, muito mais jovem, como se o destino seguisse uma ordem cronológica.
Assim, assiduamente reflitamos sobre a mortalidade tanto nossa quanto de todos aqueles que estimamos. Eu deveria ter dito: "O meu Sereno é mais jovem que eu, mas o que isso importa? Deve morrer depois de mim, mas pode morrer antes." Já que não agi assim, o destino me pegou despreparado para uma desventura súbita. Agora leva em conta que todas as coisas  são mortais e, enquanto mortais, têm leis incertas. Poderia acontecer hoje aquilo que poderia acontecer num dia qualquer.
Sêneca, Aprendendo a viver, L & PM.

Texto 4
Diz Cícero que filosofar não é outra coisa senão preparar-se para a morte. Isso, talvez, porque o estudo e a contemplação tiram a alma para fora de nós, separam-na do corpo, o que, em suma, se assemelha à morte e constitui como que um aprendizado em vista dela. Ou então é porque, de toda sabedoria e inteligência, resulta finalmente que aprendemos a não ter receio de morrer. Em verdade, ou nossa razão falha ou seu objetivo único deve ser a nossa própria satisfação, e seu trabalho tender para que vivamos bem, e com alegria, como recomenda a Sagrada Escritura [Eclesiastes 3,12: “Então compreendi que não existe para o homem nada melhor do que se alegrar e agir bem durante a vida”]. Todas as opiniões propõem que o prazer é a meta da vida,mas diferem no que concerne aos meios de atingir o alvo.
(...) A meta de nossa existência é a morte; é este o nosso objetivo fatal. Se nos apavora, como poderemos dar um passo à frente sem tremer? O remédio do homem vulgar consiste em não pensar na morte. Mas quanta estupidez será precisa para uma tal cegueira? “Por que não coloca o freio no rabo do asno, já que meteu na cabeça andar de costas?” (Lucrécio). Não há como estranhar que caia tantas vezes na armadilha. As pessoas se apavoram simplesmente com lhe ouvir o nome: a morte! E persignam-se como se ouvissem falar no diabo. E,como ela é mencionada nos testamentos, só resolvem fazer o seu quando o médico os condenou.
(...) Não sabemos onde a morte nos aguarda, esperemo-la em toda parte. Meditar sobre a morte é meditar sobre a liberdade; quem aprendeu a morrer desaprendeu a servir; nenhum mal atingirá quem na existência compreendeu que a privação da vida não é um mal; saber morrer nos exime de toda sujeição e constrangimento.Paulo Emílio, ao ir receber as honras do triunfo, respondia ao mensageiro enviado por esse infeliz rei da Macedônia, seu prisioneiro, a fim de suplicar-lhe que não o incluísse em seu séquito: “Que o solicite a si próprio”.
(...) Frequentemente indaguei de mim mesmo por que, na guerra, a perspectiva ou a presença da morte, nossa ou de outrem, nos impressiona muito menos do que em nossos lares. Se assim não fosse, um exército se comporia unicamente de médicos e de chorões. Estranho igualmente que a morte, em sendo a mesma para todos, a acolham com mais calma os camponeses e o povo miúdo que os outros. Creio, em verdade, que são esses semblantes de circunstância e esse aparato lúgubre com que a cercam, que nos impressionam mais do que ela própria. Quando ela se aproxima, há uma modificação total em nossa vida cotidiana: mães, mulheres e crianças gritam e se lamentam.

Montaigne, De como filosofar é aprender a morrer, Ensaios, disponível em: https://filosoficabiblioteca.files.wordpress.com/2013/10/124035606-michel-de-montaigne-de-como-filosofar-e-aprender-a-morrer.pdf


Texto 5
A morte é o gênio inspirador, a musa da filosofia... Sem ela, dificilmente ter-se-ia filosofado.
Nascimento e morte pertencem igualmente à vida, e formam um contrapeso; um é a condição da outra; são as duas extremidades, os dois pólos de todas as manifestações da vida. É o que a mitologia hindu, a mais sábia de todas as mitologias, exprime por um símbolo, dando como tributo a Shiva, o Deus da Destruição, um colar de caveiras, e o Lingam, órgão e símbolo da geração; porque o amor é a compensação da morte, o seu correlativo essencial; neutralizam-se, suprimem-se um ao outro. - Por isso os gregos e os romanos adornavam esses preciosos sarcófagos que ainda hoje se veem, com baixos relevos figurando festas, danças, casamentos, caçadas, combates de animais, bacanais, numa palavra, imagens da vida mais alegre, mais animada, mais intensa, até mesmo grupos voluptuosos, sátiros unidos a cabras. O seu fim tendia evidentemente a preocupar o espírito da maneira mais sensível com o contraste da morte do homem que se chora, encerrado no túmulo, e da vida imortal da natureza.
Schopenhauer, Arthur, As dores do mundo, edipro.  

sexta-feira, 17 de julho de 2020

Filosofia em Tempo de Pandemia - A peste (Albert Camus) - Parte 3

Trechos selecionados 

Até então, a peste tinha feito muito mais vítimas nos subúrbios, mais povoados e menos confortáveis, que no centro da cidade. Mas ela pareceu de repente aproximar-se e instalar-se também nos bairros comerciais. Os habitantes acusavam o vento de transportar os germes da infecção. (...) Fosse como fosse, porém, os bairros do centro sabiam que tinha chegado a sua vez ao ouvirem vibrar muito perto deles, na noite, e cada vez com mais frequência, a sirene das ambulâncias, que fazia ressoar sob as suas janelas o apelo monótono e desapaixonado da peste. 

Até no próprio interior da cidade, teve-se a ideia de isolar certos bairros particularmente castigados e de só autorizar a saída dos homens cujos serviços eram indispensáveis. Os que ali viviam até então não puderam deixar de considerar essa medida como uma peça que lhes havia sido pregada especialmente e, em todo caso, por contraste, pensavam nos habitantes dos outros bairros como homens livres. 

(...) Mais ou menos nessa época, houve também uma recrudescência de incêndios, sobretudo nos bairros residenciais à entrada oeste da cidade. As informações revelaram que se tratava de pessoas egressas da quarentena e que, enlouquecidas pelo luto e pela desgraça, ateavam fogo às suas casas na ilusão de que faziam morrer a peste. (...) E, sem dúvida, não era a pena de prisão que fazia recuar esses infelizes, mas a certeza, comum a todos os habitantes, de que uma pena de prisão equivalia a uma pena de morte, em consequência da excessiva mortalidade verificada na penitenciária municipal. Evidentemente, essa crença não era destituída de fundamento: por motivos óbvios, parecia que a peste se empenhara em atacar particularmente aqueles que tinham adquirido o hábito de viver em grupo - soldados, religiosos e prisioneiros.

(...) Porque é efetivamente necessário falar dos enterros e o narrador pede desculpas. Sente naturalmente a crítica que lhe poderia ser feita a este respeito, mas a única justificativa é que houve enterros durante toda essa época que, de certo modo, obrigaram-no, como obrigaram a todos os nossos concidadãos, a preocupar-se com enterros. Não é, em todo caso, que ele goste desse tipo de cerimônias, preferindo, pelo contrário a sociedade dos vivos e, para dar um exemplo, os banhos de mar.

(...) Pois bem, o que caracterizava no início as nossas cerimônias era a rapidez! Todas as formalidades haviam sido simplificadas e, de uma maneira geral, a pompa fúnebre fora suprimida. Os doentes morriam longe da família e tinham sido proibidos os velórios rituais, de modo que os que morriam à tardinha passavam a noite sós e os que morriam de dia eram enterrados sem demora. Naturalmente, a família era avisada, mas, na maior parte dos casos, não podia deslocar-se por estar de quarentena, se tinha vivido perto do doente. No caso de a família não morar com o defunto, apresentava-se à hora indicada, que era a da partida para o cemitério, depois de o corpo ter sido lavado e colocado no caixão.

(...) E, sem dúvida, no princípio, pelo menos, é evidente que o sentimento natural das famílias se ofendia. Em tempo de peste, porém, não é possível levar em conta semelhantes considerações: tinha-se sacrificado tudo à eficácia. Além disso, se a princípio, o moral da população se ressentira com essas práticas, porque o desejo de ser enterrado decentemente é muito mais profundo do que se supõe, pouco depois, por felicidade, o problema do abastecimento tornou-se delicado e o interesse dos habitantes migrou para preocupações mais imediatas. Absorvidos pelas filas que era preciso fazer, pelas providências a tomar pelas formalidades a cumprir caso quisessem comer, as pessoas não tiveram tempo de se ocupar da maneira como se morria à sua volta e como elas próprias morreriam um dia. (...) E tudo teria corrido bem, se a epidemia não tivesse alastrado, como já vimos.

Pois os caixões escassearam, faltou pano para as mortalhas e lugar nos cemitérios. Foi necessário tomar algumas precauções. O mais simples, e ainda por razões de eficácia, pareceu agrupar as cerimônias e, quando a coisa era necessária, multiplicar as viagens entre o hospital e o cemitério. (...) No cemitério, eram esvaziados, os corpos cor de ferro eram colocados em macas e esperavam num local preparado para esse fim. Os caixões eram regados com uma solução antisséptica e levados novamente para o hospital, onde a operação recomeçava tantas vezes quantas fossem necessárias.


Filosofia em Tempos de Pandemia - para começar a conversa

Ao iniciarmos o ano letivo de 2020 não poderíamos imaginar os desafios que teríamos que enfrentar. Embora em janeiro de 2020 já se falasse por aqui do novo coronavirus, as mortes naquele momento eram lá na China, e tudo parecia muito distante. Em fevereiro as mortes eram na Itália e, em poucas semanas, os telejornais nos trariam cenas aterradoras de caixões empilhados, caixões carregados em caminhões das forças armadas: eram mais de 1000 mortes por dia. Mas ainda parecia distante de nós.

E foi da Itália que chegou o primeiro caso do novo coronavírus confirmado no Brasil, em 26 de fevereiro. Mas muitos de nós continuávamos achando que estava longe, que o novo vírus não chegaria nas pequenas cidades, ficaria lá, nos grandes centros e logo tudo estaria bem. Mas aos poucos os casos foram aumentando, pipocando aqui e ali, até que tivemos o primeiro óbito confirmado pelo novo coronavírus, em 16 de março. E foi nessa semana que a maioria das instituições de ensino, básico, técnico e superior, anunciaram suspensão de atividades presenciais e empresas dos mais variados setores entraram em home office

O novo cenário que passamos a enfrentar trouxe muita dúvida, muita angústia, muito medo. De repente, muitos de nós nos vimos privados de encontrar nossos familiares, amigos ou colegas de trabalho. Sentimos um baque, como se estivessem roubando algo de nós... muitas pessoas perderam emprego ou perderam condições de trabalhar e, consequentemente, perderam a fonte do seu sustento. Milhares de brasileiros a essa altura do campeonato já perderam mãe, pai, avós, primos e amigos para esse vírus. O que parecia tão distante lá em janeiro ou fevereiro, agora já tem rosto conhecido. Rostos que tinham nome, que tinham histórias, sonhos e que foram interrompidos. 

Lidar com a perda é um dos grandes desafios humanos. Nossa condição de ser finito - mortal - logo nos coloca diante da perda de alguém querido. Se em tempos normais isso já não é fácil, e quando estamos impedidos de nos despedir? Quando nossos rituais são interditados? Quando o luto é vivido de forma solitária? A essa altura é bem possível que todos nós já tenhamos perdido alguém ou conheçamos alguém que perdeu. Dentre as muitas questões que têm sido feitas sobre o pós-pandemia, talvez a mais urgente delas é: quais os impactos das perdas que a pandemia causou - e ainda causará - para cada um de nós, do ponto de vista emocional, individual e coletivo?

Muitas dessas vidas - mais de 84 mil , e esses são os números oficiais, é bem provável que já seja bem mais do que isso devido a subnotificação - poderiam ter sido salvas, não fosse a condução desastrosa dessa que é a maior crise sanitária dos últimos anos. Mas não estamos sozinhos na má condução da pandemia: EUA, Reino Unido são nossas companhias. Em comum esses países têm líderes negacionistas que diminuíram a importância da pandemia, que disseram que não era preciso fazer isolamento, que disseram que era só uma gripezinha, que estavam exagerando, que indicaram medicamentos que não tinham eficácia comprovada e disseram que a economia não podia parar por causa disso. Mas é bom que digamos também que muitas dessas vidas poderiam ter sido salvas se nosso sistema de saúde fosse tratado com a seriedade que precisa, se os investimentos em saúde pública fossem adequados ao tamanho do nosso país. E isso não é de agora!

Mas o que tem a Filosofia com tudo isso?, muitos de vocês podem estar se perguntando. O que a Filosofia tem a dizer sobre a pandemia? sobre nossa insistência em querer acreditar que não chegaria até nós? sobre as perdas? sobre a morte? sobre o negacionismo científico? sobre a saúde pública? Talvez você fique surpreso, mas há muitas coisas que a Filosofia e os filósofos podem dizer - disseram e estão dizendo - sobre tudo isso e muitas outras coisas: sobre fake news, sobre as mídias digitais e sociais em tempos de isolamento social, sobre os medos e angústias que estamos enfrentando.

O meu convite é para que possamos descobrir juntos o que a Filosofia tem a nos dizer sobre tudo isso, mas, acima de tudo, o meu convite é para que possamos juntos pensar, refletir sobre esses tempos estranhos, difíceis e, por que não, sombrios, que estamos vivendo. Porque todos nós certamente estamos cheios de dúvidas e questionamentos sobre tudo isso. E dúvidas e questionamentos são ótimos pontos de partida para a Filosofia!

Igualdade entre homens e mulheres (1622) - Marie de Gournay

  “A maioria dos que defendem a causa das mulheres, lutando contra essa orgulhosa preferência que os homens se atribuem, lhes dá o troco com...