quarta-feira, 1 de setembro de 2021

Variações sobre o prazer (Rubem Alves)

 “Afirmar a bondade do prazer é escandaloso no Ocidente.” A espiritualidade ocidental foi construída sobre a negação do prazer. As feridas e lacerações que a espiritualidade católica elegeu como objetos de adoração são expressões plásticas desse fato. E o ascetismo e disciplina de trabalho, virtudes supremas do protestantismo, são a sua manifestação racional e moral.

(...) Mas eu acredito que vivemos para ter prazer. Bachelard era mais ousado do que eu e não se envergonhava de afirmar: “O universo tem, para além de todas as misérias, um destino de felicidade. O homem deve reencontrar o Paraíso”. (...) O destino da razão é servo do prazer e da alegria. Creio na função educativa e intelectual do prazer. Uma inteligência feliz é uma inteligência... mais inteligente...

 (...)

Por muito tempo, influenciado pela psicanálise, usei a palavra “prazer” para me referir ao impulso fundamental que movimenta o corpo. Hoje a palavra prazer já não me satisfaz. O corpo não se contenta com o prazer. Uma das muitas amantes de Tomás dizia: “Eu não quero prazer. Eu quero é alegria!”. A experiência do prazer, tão boa, sempre nos coloca diante de um vazio. A teologia de santo Agostinho se constrói sobre esse vazio que se segue ao prazer. Depois de esgotado o prazer, existe, na alma, a nostalgia por algo indefinível. Que indefinível é esse que, se encontrado, nos traria a alegria? Estou pronto a concordar com o santo: um indefinível que, se encontrado, me traria alegria, eu o adoraria como deus, a ele entregaria a minha vida.
  Pus-me então a pensar sobre a diferença entre prazer e alegria – ambos muito bons. E estas foram as conclusões a que cheguei.
 
Sobre o prazer:
(1) O prazer só acontece se o corpo tiver a posse do seu objeto. O prazer do sorvete só existe se houver um sorvete a ser lambido. O prazer do suco de pitanga só existe se houver suco de pitanga para ser bebido. O prazer do beijo só existe se houver a pessoa amada a ser beijada.
(2) O prazer se farta logo. Quantos sorvetes sou capaz de tomar antes que ele se transforme de objeto de prazer em causa de sofrimento? Quantos copos de suco de pitanga sou capaz de tomar antes que o corpo diga: “Não aguento mais!?”. Quantos beijos se pode dar na pessoa amada antes de enjoar? O prazer tem vida curta. O evangelho do prazer reza: “Bem-aventurados os que têm fome, porque serão fartos”.
Sobre a alegria:
(1) A alegria não precisa da posse do objeto desejado para existir. Lembro-me do rosto de um amigo – ele já morreu –, mas esta simples memória me traz alegria, junto com uma pitada de tristeza. Sentimos alegria lendo uma obra de ficção, um objeto que nunca existiu pode nos dar alegria, como é o romance entre Fiorentino Ariza e Firmina Daza120 ou o filme A festa de Babette. Paul Valéry: “Que somos nós sem o socorro das coisas que não existem?”. Que seres estranhos nós somos, capazes de nos alegrar comendo frutos inexistentes!
(2)  A alegria nunca se farta. A alegria pede mais alegria. Alegria é fome insaciável. Da alegria nunca se diz: “Estou satisfeito!”, “Chega!”. O evangelho da alegria é diferente do evangelho do prazer: “Bem-aventurados os que têm fome, porque terão mais fome”.
 
Mas, vez por outra, a alegria e o prazer acontecem juntos. Quando isso acontece, o corpo experimenta uma efêmera epifania do Paraíso: o divino se faz carne...
 
Alves, Rubem, Variações sobre o Prazer, 6ª edição, São Paulo: Planeta, 2011.

Muito Prazer (Fernando Savater)

 (...) Quando as pessoas falam em "moral", e sobretudo em "imoralidade", 80% das vezes - e com certeza estou subestimando esse número - o sermão trata de alguma coisa referente ao sexo. Tanto que alguns acham que a moral se dedica antes de tudo a julgar o que as pessoas fazem com seus genitais. O absurdo não poderia ser maior, e suponho que, por menor atenção que tenha dado ao que acabo de dizer até agora, você não concorda com isso. No sexo, em si, não há nada mais "imoral" do que na alimentação ou nos passeios pelo campo; claro que alguém pode comportar-se imoralmente no sexo (utilizando-o para prejudicar outra pessoa, por exemplo), assim como há quem coma a ração do vizinho ou aproveite seus passeios para planejar atentados terroristas. Como a relação sexual pode chegar a estabelecer vínculos muito poderosos e complicações afetivas muito delicadas entre as pessoas, é lógico que se levem em conta especialmente as considerações devidas aos semelhantes nesses casos. Quanto ao mais, no entanto, quero dizer simplesmente que naquilo que dá prazer a dois e não prejudica a nenhum não há nada de mau. O que de fato é "mau" é as pessoas acharem que haja algo de mau em ter prazer...

(...) a experiência sexual não pode limitar-se simplesmente à função procriadora. Nos seres humanos, os dispositivos naturais para garantir a perpetuação da espécie sempre têm outras dimensões que a biologia não parece ter previsto. A eles acrescentam-se símbolos e refinamentos, invenções preciosas dessa liberdade sem a qual os homens não seriam homens. É paradoxal aqueles que veem algo de "mau" ou pelo menos de "ilícito" no sexo dizerem que se dedicar a ele com entusiasmo excessivo animaliza o homem. A verdade é que são justamente os animais que só utilizam o sexo para procriar, assim como só os animais utilizam a comida para se alimentar ou o exercício físico para conservar a saúde; os seres humanos, por outro lado, inventaram o erotismo, a gastronomia e o atletismo. (...) Quanto mais o homem separa o sexo da simples procriação, menos animal e mais humano ele se torna. Claro, isso tem consequências boa e más, como sempre acontece quando a liberdade está em jogo...

O que se esconde em toda essa obsessão sobre a "imoralidade" sexual não é nem mais nem menos do que um dos mais velhos temores sociais do homem: o medo do prazer.  O prazer sexual é tão cercado de tantas suspeitas e cautelas justamente por se destacar entre os mais intensos e vivos que se podem sentir. Por que o prazer assusta? Suponho que seja por nos agradar demais. (...) O prazer às vezes nos distrai mais do que convém, o que pode acabar sendo falta. Por isso os prazeres sempre foram objeto de tabus e restrições, cuidadosamente racionados, permitidos apenas em certas datas, etc.: trata-se de precauções sociais (que às vezes perduram mesmo quando já não são necessárias) para que ninguém se distraia demais do perigo de viver. 

(...) "Devemos segurar com unhas e dentes o uso dos prazeres da vida, que os anos vão nos tirando um depois do outro" (Michel de Montaigne). Quero destacar duas coisas dessa frase de Montaigne. A primeira aparece no final da recomendação, e diz que os anos vão tirando incessantemente possibilidades de gozo, e que por isso não é prudente esperar demais para resolver desfrutar. Se esperamos muito para desfrutar, acabaremos deixando de fazê-lo... É preciso saber entregar-se a saborear o presente, o que os romanos (e o profe-poeta meio enfadonho de A sociedade dos poetas mortos) resumiam no ditado carpe diem. Isso não quer dizer que você deve buscar hoje todos os prazeres, mas que deve buscar todos os prazeres de hoje. (...) Isso me leva ao princípio da frase de Montaigne que mencionei antes, quando fala em segurar com unhas e dentes "o uso dos prazeres da vida". O bom é usar os prazeres, ou seja, sempre ter certo controle sobre eles, não permitindo que se voltem contra o resto do que constitui sua existência pessoal. 

(...) O prazer é muito agradável, mas tem uma tendência prejudicial a ser exclusivo: se você se entregar a ele com demasiada generosidade, ele será capaz de deixá-lo sem nada, sob o pretexto de fazê-lo viver bem. Usar os prazeres, como diz Montaigne, é não permitir que qualquer um deles elimine a possibilidade de todos os outros ou esconda completamente o contexto da vida, nada simples, em que cada um tem sua ocasião. A diferença entre o "uso" e o "abuso" é exatamente essa: quando usamos um prazer, enriquecemos nossa vida e gostamos cada vez mais, não só do prazer, mas da própria vida; o sinal de que estamos abusando é notar que o prazer vai nos empobrecendo a vida e que já não nos interessamos por ela, mas apenas por esse prazer particular. 

(...) A ética consiste em apostar em que a vida vale a pena, pois a´te as penas da vida valem a pena. E valem a pena porque é através delas que podemos alcançar os prazeres da vida, sempre contínuos - é o destino - às dores. De modo que, se eu tiver de escolher entre as penas da vida e os prazeres da morte, sem dúvida escolho as primeiras...justamente porque gosto de desfrutar e não de perecer! Não quero prazeres que me permitam fugir da vida, e sim aqueles que a tornem mais intensamente grata.

 

 SAVATER, Fernando. Ética para meu filho, 2º ed, São Paulo: Planeta, 2012


Sentidos de "moral"

Conhece-se a ambiguidade [da] palavra [moral]. Por "moral" entende-se (i) um conjunto de valores e regras de ação propostas aos indivíduos e aos grupos por intermédio de aparelhos prescritivos diversos, como podem ser a família, as instituições educativas, as Igrejas, etc. Acontece de essas regras e valores serem bem explicitamente formulados numa doutrina coerente e num ensinamento explícito. Mas acontece também de elas serem transmitidas de maneira difusa e, longe de formarem um conjunto sistemático, constituírem um jogo complexo de elementos que se compensam, se corrigem, se anulam em certos pontos, permitindo, assim, compromissos ou escapatórias. Com essas reservas pode-se chamar "código moral" esse conjunto prescritivo. Porém, por "moral" entende-se igualmente (ii) o comportamento real dos indivíduos em relação às regras e aos valores que lhes são propostos: designa-se, assim, a maneira pela qual eles se submetem mais ou menos completamente ao um princípio de conduta; pela qual eles obedecem ou resistem a uma interdição ou a uma prescrição; pela qual eles respeitam ou negligenciam um conjunto de valores; (...)

Em suma, para ser dita "moral" uma ação não deve se reduzir a um ato ou a uma série de atos conformes a uma regra, lei ou valor. É verdade que toda ação moral comporta uma relação ao real em que se efetua, e uma relação ao código a que se refere; mas ela implica também uma certa relação a si; essa relação não é simplesmente "consciência de si", mas constituição de si enquanto "sujeito moral", na qual o indivíduo circunscreve a parte dele mesmo que constitui o objeto dessa prática moral, define sua posição em relação ao preceito que respeita, estabelece para si um certo modo de ser que valerá como realização moral dele mesmo;e, para tal, age sobre si mesmo, procura conhecer-se, controla-se, põe à prova, aperfeiçoa-se, transforma-se. 

Foucault, M, O uso dos prazeres, in Textos básicos de ética: de Platão a Foucault, de Danilo Marcondes.

segunda-feira, 23 de agosto de 2021

Ponha-se no lugar do outro (Fernando Savater - Ética para meu filho).

Robinson Crusoé passeia por uma das praias da ilha à qual foi confinado por uma inoportuna tempestade seguida de naufrágio. Leva seu papagaio ao ombro e protege-se do sol graças à sombrinha fabricada com folhas de palmeiras, que o faz sentir orgulho, com razão, de sua habilidade. Ele acha que, em vista das circunstâncias, até que não se arranjou mal. Agora tem um refúgio para se proteger contra as inclemências do tempo e dos ataque dos animais selvagens, sabe onde conseguir alimento e bebida, tem roupas para se abrigar - que ele mesmo fez com elementos naturais da ilha -, os dóceis serviços de um pequeno rebanho de cabras, etc. Enfim, acha que sabe arranjar-se para levar mais ou menos sua vida boa de náufrago solitário. Robinson continua passeando, e está tão contente consigo mesmo que por um momento parece não sentir falta de nada. De repente, detém-se com um sobressalto. Ali, na areia, desenha-se uma marca que irá revolucionar toda a sua pacífica existência: uma pegada humana. 

De quem será? Amigo ou inimigo? Talvez um inimigo que possa se tornar amigo? Homem ou mulher? Como se entenderá com ele, ou ela? Como irá tratá-lo? Robinson já está acostumado a se fazer perguntas desde que chegou à ilha e a resolver os problemas do modo mais engenhoso possível: o que vou comer? Onde vou me abrigar? Como posso proteger-me do sol? Mas agora a situação não é a mesma, pois não se trata de lidar com acontecimentos naturais, como a fome e a chuva, nem com animais selvagens, mas com um outro ser humano, ou seja, com outros Robinsons e Robinsonas. Diante dos elementos ou dos animais, Robinson pôde comportar-se sem atender a nada além de sua necessidade de sobrevivência. Tratava-se de ver se podia com eles ou se eles podiam com ele, sem mais complicações. Mas, diante de seres humanos, a coisa já não é tão simples. Ele deve sobreviver, sem dúvida, mas não de qualquer modo. Se Robinson transformou-se num animal como os outros que perambulam pela selva, por causa de sua solidão e sua desventura, sua única preocupação será saber se o desconhecido dono da pegada é um inimigo a ser eliminado ou uma presa a ser devorada. Mas, se quer continuar sendo homem...Então já não estará lidando com uma presa ou um simples inimigo, mas com um rival ou um possível companheiro; de todo modo, com um semelhante

Enquanto está só, Robinson enfrenta questões técnicas, mecânicas, higiênicas, até científicas, se é que você me entende. A questão é salvar a vida num meio hostil e desconhecido. Mas quando ele encontra a pegada de Sexta-Feira na areia da praia, começam seus problemas éticos. Já não se trata apenas de sobreviver, como um animal selvagem ou uma alcachofra, perdido na natureza; agora precisa começar a viver humanamente, ou seja, com outros homens, mas entre homens. O que faz a vida ser "humana" é o fato de transcorrer em companhia de seres humanos, falando com eles, pactuando e mentindo, sendo respeitado ou traído, amando, fazendo projetos e recordando o passado, desafiando-se organizando juntos as coisas comuns, jogando, trocando símbolos... A ética não se ocupa em saber como se alimentar melhor, qual a maneira mais recomendável de se proteger do frio ou que fazer para atravessar um rio sem se afogar, todas questões muito importantes, sem dúvida, para sobrevivência em determinadas circunstâncias; o que interessa à ética, o que constitui sua especialidade, é como viver bem a vida humana, a vida que transcorre entre humanos. Se não soubermos como nos arranjar para sobreviver em meio aos perigos naturais, perderemos a vida, o que sem dúvida será um grande dano; mas, se não tivermos nem ideia de ética, perderemos ou prejudicaremos o humano de nossa vida, o que, francamente, também não tem graça nenhuma. 

Eu disse antes que a pegada na areia anunciou a Robinson a proximidade comprometedora de um semelhante. Mas, vejamos: até que ponto Sexta-Feira era semelhante a Robinson? De um lado, um europeu do século XVII, possuidor dos conhecimentos científicos mais avançados de sua época, educado na religião cristã, familiarizado com os mitos homéricos e com a imprensa; de outro, um selvagem canibal dos mares do Sul, em outra cultura além da tradição oral de sua tribo, crente numa religião politeísta e ignorando a existência das grandes cidades da época, como Londres e Amsterdã. Neles, tudo era diferente: cor da pele, gostos culinários, entretenimentos...Certamente nem sonhos noturnos tinham algo em comum. No entanto, apesar de tantas diferenças, também havia entre eles características fundamentais parecidas, semelhanças essenciais que Robinson não compartilhava com nenhum animal, com nenhuma árvore ou manancial da ilha. Para começar, ambos falavam, embora suas línguas fossem muito diferentes. O mundo, para eles, era feito de símbolos e de relações entre símbolos, e não de simples coisas sem nome. Tanto Robinson como Sexta-Feira eram capazes de atribuir valor aos comportamentos, de saber que podemos fazer algumas coisas que são "boas" e outras que, ao contrário, são "más". À primeira vista, o que os dois consideravam "bom" e "mau" também não era igual, pois seus valores concretos provinham de culturas muito distantes: sem buscar muito longe, o canibalismo era um costume aceito por Sexta-Feira, ao passo que despertava o mais profundo horror em Robinson - assim como em você, suponho, por mais comilão que você seja. Apesar disso, os dois possuíam critérios destinados a justificar o que é aceitável e o que é aversivo. Embora partissem de posições muito distantes numa discussão, podiam chegar a discutir e compreender o que estavam discutindo. Já é bem mais do que em geral se faz com um tubarão ou com uma avalanche de rochas, não é mesmo?

(...) Essa própria semelhança quanto à inteligência, a capacidade de calcular e projetar, às paixões e aos medos, isso que torna os homens tão perigosos para mim, quando querem sê-lo, torna-os também extremamente úteis. Quando um ser humano combina bem comigo, nada poderá combinar melhor. Vejamos, o que você conhece que seja melhor que ser amado? Quando alguém quer dinheiro, ou poder, ou prestígio...por acaso não deseja essas riquezas para poder comprar a metado do que recebemos de graça quando somos amados? E quem pode me amar de verdade senão um outro ser como eu, que me ame como ser hukano...e apesar disso? Nenhum bicho, por mais carinhoso que seja, pode me dar tanto quanto outro ser humano, mesmo que seja um ser humano antipático. É certo que, em todo cado, devo tratar os homens com cuidado. Mas esse "cuidado" não pode consistir antes de tudo em suspeita ou prevenção, mas na consideração que se tem ao lidar com as coisas frágeis, as coisas mais frágeis de todas...por não serem simples coisas. Como o vínculo de respeito e amizade para com os outros humanos é o mais precioso do mundo para mim, que também sou humano, quando me vejo diante deles deve ter o maior interesse em resguardá-los e em até mimá-los, se é que você me entende. Nem na hora de salvar a pele é aconselhável que eu esqueça completamente essa prioridade.


(...) em que consiste tratar as pessoas como pessoas, ou seja, humanamente? Resposta: consiste em tentar colocar-se em seu lugar. Entender alguém como semelhante implica sobretudo a possibilidade de compreendê-lo a partir de dentro, de adotar por um momento seu próprio ponto de vista. É algo que só possso pretender de maneira muito romântica e muito duvidosa com um morcego ou um gerânimo, mas que, em compensação, impõem-se com os seres capazes, como eu, de manejar símbolos. Afinal, sempre que falamos com alguém, o que fazemos é estabelecer um terreno no qula quem agora é "eu" sabe que se transformará em "você", e vice-versa. Se não admitíssemos que existe algo fundamentalmente igual entre nós (a possibilidade de ser para o outro o que o outro é para mim) não poderíamos trocar nem um palavra. Onde há troca também há reconhecimento de que de certo modo pertencemos a quem está diante de nós e quem está diante de nós nos pertence... E isso mesmo que eu seja jovem e o outor velho, que eu seja home e outro mulher, mesmo que eu seja branco e o outro negro, que eu seja bobo e o outro esperto, mesmo que eu esteja são e o outro doente, que eu seja rico e o outro pobre. "Sou humano" - disse um antigo poeta latino - "e nada do que é humano pode parecer0me alheio". Ou seja, ter consciência do que é humano consiste em dar-me conta de que, apesar de todas as diferenças muito reais entre os indivíduos, também estou de certo modo dentro de cada um dos meus semelhantes. Para começar, como palavra...

(...) Em suma, pôr-se no lugar do outro é levá-lo a sério, considerá-lo tão plenamente real como você mesmo.

(...) Não estou dizendo que haja algum mal em você ter seus próprios interesses, nem que você sempre deve renunciar a eles para dar prioridade aos de seu vizinho. Os seus interesses, decerto, são tão respeitáveis quano os dele, e o resto é conversa. Mas atente para a própria palavra "interesse": ela vem do latim inter esse, o que está entre vários, o que coloca vários em relação. Ao falar em "relativizar" seu interesse, quero dizer que esse interesse não é algo exclusivamente seu, com ose você visse sozinho num mundo de fantasmas, mas é algo que colcoa você em contato com outras realidades, tão "de verdade" quanto você mesmo. De modo que todos os interesses que você possa ter são muito relativos (conforme outros interesses, conforme as circunstâncias, conforme leis e costumes da sociedade em que você vive), com exceção de um interesse, o único interesse absoluto: o interesse de ser humano entre os humanos, de dar e receber o tratamento de humanidade sem o qual não pode haver "vida boa".

                                           SAVATER, Fernando. Ética para meu filho, 2º ed, São Paulo: Planeta, 2012.


 


terça-feira, 25 de maio de 2021

Conhecimento

    Conhecer é a principal atividade pela qual os seres humanos constroem sentidos para a existência. 

    Conhecemos o tempo todo, desde que acordamos até o momento de dormir. Mesmo nos sonhos podem ocorrer "conhecimentos". Neles, podemos enteder coisas que nos parecem estranhas quando estamos acordados ou ter inspirações que iluminam aspectos de nossas vidas. Muitos poetas, romancistas, cientistas, filósofos, pintores, entre outros, garantem que, durante o sonho, eles vivem momentos que os ajudam a compreender e melhorar seu trabalho. Não é a toa que costuam ter um caderno perto da cama, para anotar suas inspirações. 

    Seja na vigília, seja no sonho, se alguma experiência tem sentido par anós e se conseguimos entendê-la com clareza, dizemos ter conhecimento.

    A atividade de conhecer acontece de diferentes modos e não é idêntica para todas as pessoas. Conhecemos o cheiro do café que tomamaos de manhã, assim como conhecemos um texto de literatura ou uma equação matemática estudada na escola, como ainda conhecemos a emoção sentida ao viver uma situação alegre, triste etc. Conhecemos também a cor da camiseta que vestimos, assim como o cientista explica o que são as cores do arco-íris. 

    A filosofia, por ser um pensamento sobre o pensamento, interessa-se de modo especial pelo tema do conhecimento. No entanto, justamente como tal, a filosofia, mais do que "explicar" o mundo, como fazem os cientistas, artistas, literatos e outros cultivadores do saber, interroga pelo que significa conhecer. Trata-se de fazer um retrato da realidade? De interpretá-la? De mudá-la? 

    Pelo menos três tipos de respostas foram dados pelos pensadores ao longo da História da Filosofia.

    (...) As três respostas podem ser resumidas como segue:

(1) retratamos a realidade conhecida; (2) retratamos a realidade conhecida, mas apenas parcialmente, pois o retrato que fazemos depende de certas condições que não nos autorizam a concluir que o retrato é direto (há algo, portanto, entre nós e a realidade: a representação que fazemos dela); (3) captamos a realidade conhecida, mas participando do modo de captá-la (sem, por isso, pôr algo intermediário entre ela e nós). 

    (...) Dificilmente algum filósofo acreditár que conhecer é capturar diretametne a realidade conhecida, como se fosse possível, digamos, "enfiar" em nossa consciência a árvore ou o fogo, a madeira, a pedra, o animal ou a pessoa que vemos. Assim, tornou-se consensual, para muitos pensadores, afirmar que conhecemos a realidade e nos relacionamos com ela por meio do "retrato" que dela fazemso. A esse "retrato", chama-se, em geral, de conceito ou ideia. No pensamento antigo, Platão e Aristóteles, entre outros, afirmaram que Ideias, Formas ou Essências eram mais do que simples retratos; eram as "letras" invisíveis com as quais o mundo está "escrito". Conhecer as Ideias seria conhecer as regras do mundo mesmo. Platão chegava a declarar que o ser humano é habitado pelas mesmas Ideias com que o mundo é escrito, pois elas seriam aquilo que permite a atividade de conhecer. 

    Durante a Modernidade, porém, grande parte dos filósofos passou a falar de conceito ou ideia como algo "construído", um "retrato" tirado para representar as leis que organizam o mundo. A ciência moderna, principalmente com seu caráter fortemente mecanicista, contribuiu para o surgimento dessa maneira de entender a ideia, razão pela qual , aqui escremos ideia com "i" minúsculo, a fim de distinguir da Ideia no sentido platônico. 

    Em nossos dias, somos herdeiros diretos da compreensão moderna de conhecimento. Por isso, vale a pena dedicar especial atenção a ela. 

    Entre os filósofos modernos, houve os que consideravam a idea ou o "retrato" que tiramos do mundo como uma representação fiel. Essa maneira de pensar, embora com variações, foi comum a autores dos estilos conhecidos como racionalismo e empirismo. De modo geral, esses filósofos identificavam no ser humano as capacidades da sensação e do intelecto,  responsáveis pela atividade do conhecimento. A sensação seria a cpacidade sentir ou de captar dados por meio dos cinco sentidos; o intelecto, por sua vez, seria a capacidade de elaborar os dados físicos captados, transformando-os em ideias ou conceitos

    (...) Em resumo, se para os racionalistas o ser humano é dotado de um conjunto de dados que permitem a reelaboração das informações sensíveis, para os empiritas o ser humano é como uma folha em branco ou uma tabula rasa (uma tábua lisa, um lousa limpa). Nessa tábua lisa, a experiência sensível grava informações que são reelaboradas pelos seres humanos por meio do hábito, permitindo mesmo inventar outras ideia com base nas ideias vindas da sensibilidade. 

    (...) Outros filósofos, por outro lado, terão reservas com a concepção do conhecimento como simples "retrato" domundo. Sem ser propriamente contrários a ela, não consideram que nosso conhecimento seja cópia fiel da realidade. Por ser justamente um "retrato" da realidade, o conhecimento depende das condições ou da "aparelhagem" dos sujeitos ou indivíduos cognoscentes. Nada justificaria, então, crer que a realidade seja só aquilo que seu "retrato" apresenta. 

    O filósofo mais conhecido quanto a esse modo de entender o conhecimento é certamente Immanuel Kant. Ele concordava com David Hume quando insistia na afirmação dos dados sensíveis como fonte do conhecimento seguro. Aliás, Kant declarava ter sido despertado por Hume de seu sono dogmático. No entanto, Kant também concordava com Descartes, pois considerava muito difícil explicar a elaboração dos dados sensíveis caso não houvesse, em todo ser humano, um "aparelhamento" cognitivo ou uma estrutura que permitisse reelaborar os dados captados por meio dos cinco sentidos. Ainda que a mente ou a capacidade cognitiva dos er humano seja uma táula rasa ou uma folha em branco, ela é um tabula dotada de certas possibilidades, capacidades. Não são as informações captadas pelos cinco sentidos que produzem essa tabula; elas são captadas graças ao fato de já existir uma tabula na qual essas podem ser registradas. 

    Kant percebia, assim, que, ao descrever o conhecimento humano, não era justificável a passagem direta das impressões sensíveis às representações mentais das coisas percebidas e causadoras das impressões. Sozinhos, os cinco sentidos permaneceriam "mudos", pois são incapazes de correlacionar as informações captadas por eles mesmos. Ademais, cada sentido sequer percebe sua própria operação: a visão não percebe o próprio ato de ver, apenas as coisas vistas; a audição não percebe o ato de ouvir, apenas os sons; e assim por diante. Segundo Kant, é preciso, então haver uma estrutura interna nos indivíduos, capaz de sintetizar os dados captados pro meio dos cinco sentidos. De certa maneira, a compreeensão kantiana do conhecimento combina o empirismo de Hume com o racionalismo de Descartes. 

    (...)A estrutura subjetiva composta pelas formas da sensibilidade (tempo e espaço) e pelas categorias do entendimento (as relações de causalidade, entre outras) está presente em todos os seres humanos, pois a comunicação entre eles o comprova.  (...) Assim, mesmo que o conhecimento seja sempre um ato pessoal, ele segue uma estrutura comum a todas as pessoas e anterior a toda experiência, sendo a concição mesma para haver experiência. 

    Dotado de um "aparelho" cognitivo natural e responsável por transformar em representações do mundo os dados da impressão sensível, o ser humano, de acordo com Kant, só conhece de modo seguro, objetivo e mesmo científico aquilo que pode ser captado por esse "aparelho". É possível pensar outras coisas que não são captadas sensivelmente (como Deus, o bem, a beleza e assim por diante); no entanto, tal pensamento não poderá ser considerado objetivo. Por essa razão, Kant distingue entre a razão, capacidade humana de pensar em geral, e o entendimento ou intelecto, capacidade racional de conehcer de modo objetivo e científico. 

    (...) O conhecimento objetivo seria como uma fotografia que interpõe entre nós e a realidade um espelho com a imagem que construímos para retratar a realidade. Sobre essa imagem espelhada pode-se falar de modo objetivo. Mas a realidade pode ser mais ampla do que a imagem construída. 

    Para indicar o caráter mais amplo da realidade e delimitar o campo do que pode ser considerado objetivo, Kant criou uma distinção entre aquilo que a realidade mostra de si mesma (e que pdoe ser conhecido objetivamente por todos) e o que a realidade guarda como seu fundamento (e que está além do que o "aparelho" cognitivo humano pode captar objetivamente). Ao que a realidade mostra de si mesma Kant chama de fenômeno, servindo-se da palavra grega phainomenon, "aquilo que aparece". Trata-se do modo cmo as coisas conhecidas se msotram para o ser humano (sempre no tempo e no espaço e captadas segundo as categorias do entendimento ou intelecto). Ao fundamento das coisas, impossível de ser conhecido objetivamente porque não é captado pelo aparelho cognitivo, Kant chama númeno, também se servindo de uma palavra grega, noumenon, "a coisa em si" ou a coisa com que os humanso depara, porém tomada em si mesma, quer dizer, naquilo que ela é, e não segundo aquilo que os humanso conhecem dela.  (...) Depois de Kant, fenômeno é aquilo que o ser humano pode conehcer nas coisas, porque é o modo mesmo de elas se mostrarem. 

 FILHO, Juvenal Savian, Filosofia e filosfias: existência e sentidos,  Belo Horizonte: Autêntica, 2016.

    

    



segunda-feira, 3 de maio de 2021

Quem é você? (trecho selecionado do livro O mundo de Sofia)

 Sofia jogou a mochila da escola num canto e colocou uma tigela de ração para Sherekan. Depois, segurando a carta misteriosa, largou o corpo sobre um banquinho da cozinha. 

Quem é você?

Se ela soubesse! É claro que ela era Sofia Amundsen, mas quem era esta pessoa? Isto ela ainda não tinha descoberto direito. 

E se tivesse outro nome? Anne Knutsen, por exemplo. Será que só por isso seria também uma outra pessoa?

De repente lembrou-se de que no começo seu pai queria que ela se chamasse Synnove Amundsen. Sofia tentou imaginar-se estendendo a mão e apresentando-se como Synnove Amundsen. Não, não dava. Toda vez que pensava nisso imaginava sempre outra pessoa. 

Então saltou do banquinho e foi para o banheiro com a carta misteriosa na mão. Parou diante do espelho e olhou-se fixamente nos olhos.

- Sou Sofia Amundsen - disse.

Como resposta, a garota do espelho não teve a menor reação. Não importava o que Sofia fizesse, ela fazia a mesma coisa. Com um movimento rápido, Sofia tentou se antecipar à imagem do espelho; mas ela foi igualmente rápida. 

- Quem é você? - perguntou Sofia.

Também desta vez não recebeu qualquer resposta; por um breve instante, porém, não teve certeza de ter sido ela ou sua imagem noe spelho quem tinha feito a pergunta. 

Com o dedo indicador, Sofia apertou o nariz da figura do espelho e disse.

-Voce sou eu.

E como não recebeu qualquer resposta, inverteu a sentença e disse:

-Eu sou você. 

Sofia Amundsen nunca estava muito satisfeita com sua aparência. Com frequência ouvia que tinha lindos olhos amendoados, mas provavelmente lhe diziam isto porque seu nariz era pequeno demais em relação ao tamanho da boca. O pior de tudo eram mesmo os cabelos lisos, que não tomavam forma nenhuma. Às vezes seu pai lhe acariciava os cabelos e a chamava de "a garota dos cabelos de linho", parodiando uma composição de Claude Debussy. Para ele era fácil dizer isto; afinal, não era ele quem estava condenado a carregar a vida inteira cabelos pretos e escorridos de tão lisos. E nos cabelos de Sofia não adiantava passar nada, nem spray, nem gel. 

Às vezes ela achava sua aparência tão estranha que se perguntava se não teria sido um bebê malformado. Sua mãe sempre contara que tivera um parto difícil. Mas será que era mesmo o nascimento que determinava a aparência de uma pessoa?

Não era um tanto esquisito ela não saber quem era? E também não era um injustiça o fato de ela mesma não poder determinar sua aparência? Isto simplesmente lhe tinha sido imposto ao nascer. Seus amigos, estes sim ela talvez pudesse escolher, mas não tinha tido a chance de escolher-se a si própria. Não tinha sequer decidido ser uma pessoa. 

(...)

Não era extraordinário estar viva naquele momento e ser personagem de uma aventura maravilhosa como a vida?

(...)

Depois de pensar um pouco sobre o fato de existir, Sofia não pôde deixar de pensar também que um dia desapareceria. 

Estou vivendo no mundo agora, pensou. Mas um dia terei desaparecido. 

Será que havia uma vida após a morte? Também sobre esta questão o gato não fazia a menor ideia. 

GAARDER, Jostein, O Mundo de Sofia:Romance da história da filosofia, Tradução: João Azenha Jr,  18ª reimpressão,   Capítulo: Terceiro, São Paulo: Cia das Letras, 1995


O pensamento filosófico e a tarefa da filosofia

 A filosofia é um modo de pensar, é uma postura diante do mundo. Ela não é um conjunto de conhecimentos prontos, um sistema acabado, fechado em si mesmo. Ela é, antes de mais nada, um modo de se colocar diante da realidade,  procurando refletir sobre os acontecimentos a partir de certas posições teóricas. Essa reflexão permite ir além da pura aparência dos fenômenos, em busca de suas raízes e de sua contextualização em um horizonte amplo, que abrange os valores sociais, históricos, econômicos, políticos, éticos e estéticos. Por essa razão, ela pode se voltar para qualquer objeto.  Pode pensar sobre a ciência, seus valores, seus métodos, seus mitos; pode pensar a respeito da religião; pode pensar sober a arte; pode pensar acerca do próprio ser humano em sua vida cotidiana. Uma história em quadrinhos ou uma canção popular também podem ser objeto da reflexão filosófica. 

A filosofia é um jogo irreverente que parte do que existe, critica, coloca em dúvida, faz perguntas importuna, abre as portas das possibilidades, faz-nos entrever outros mundo e outros modos de compreender a vida. 

A filosofia incomoda porque questiona o modo de ser das pessoas, das culturas, do mundo. Questiona as práticas política, científica, técnica, ética, econômica, cultural  e artística.  Não há área em que ela não se meta, não indague, não perturbe. E, nesse sentido, a filosofia é perigosa,  subversiva,  pois vira a ordem estabelecida de cabeça para baixo. 

Essa subversão da ordem, entretanto, não é feita gratuitamente, não é um quebrar regras e costumes simplesmente por quebrar. A maior parte dos filósofos subverteu a ordem porque, ao indagar sobre a realidade de sua época, fez surgir novas possibildiades de comportamento e de relação social.  Do ponto de vista da ordem estabelecida, isto é, das instituições e da ideologia dominante, eles destruíram uma tradição. Do ponto de vista da história, eles nos fizeram ver injustiças, arbitrariedades, estratagemas de dominação e de exploração. 

Se o patriarcalismo, como ordem divina da criação, por exemplo, não tivesse sido colocado em dúvida por pensadores de ambos os sexos e por pessoas engajadas no movimento em prol da igualdade de homens e mulheres em termos de capacidade intelectual e moral, estas, ou seja, mais de 50% da população mundial, ainda hoje não seria considerada cidadã nem teria direito de votar e ser votada. 

(...)

Quando a filosofia surgiu, entre os gregos, no século VI a.C, ela englobava tanto a indagação filosófica propriamente dita quanto o que hoje chamamos de conhecimento científico. O filósofo teorizava sobre todos os assuntos, procurando responder ao porquê das coisas. É por isso que os filósofos Tales e Pitágoras e depois o matemático Euclides (de Alexandria) dedicaram-se também ao estudo da gemometria. Aristóteles, por sua vez, debruçou-se sobre problemas físicos e astronômicos, porque estes interessavam à cultura e à sociedade de sua época

Foi a partir do século XVII, com Galileu Galilei e o aperfeiçoamento do método científico, fundado na observação, experimentação e matematização dos resultados, que a ciência começou a se constituir como forma específica de abordagem do real e a se destacar da filosofia. Apareceram, pouco a pouco, as ciências particulares, que investigam a realidade sob pontos de vista específicos: à física interessam os movimentos dos corpos; à biologia, a natureza dos seres vivos; à química, as transformações das substâncias; à psicologia, os mecanismos do funcionamento da mente humana; à sociologia, a organização social etc.

A partir de então, o conhecimento foi fragmentado entre as várias ciências, pois cada qual se ocupava somente de de uma pequena parte do real . As afirmações de cada uma elas são chamadas juízos de realidade,  porque se referem aos fenômenos e pretendem mostrar como  estes ocorrem e como se relacionam. De posse desses dados, torna-se possível prevê-los e controlá-los. 

A filosofia trata dessa mesma realidade, mas, em vez de fragmentá-la em conhecimentos particulares, toma-a como totalidade de fenômenos, ou seja, considera a realidade a partir de uma visão de conjunto. Qualquer que seja o problema, a reflexão filosófica leva em conta cada um de seus aspectos, relacionando-o ao contexto dentro do qual ele se insere e restabelecendo a integridade do universo humano. 

(...)

Cabe ao filósofo refletir sobre o que é ciência, o que é metodo científico, sua validade e seus limites. A ciência é realmente um conhecimento objetivo? O que é a objetividade e até que ponto um sujeito histórico - o cientista - pode ser objetivo? 

Cabe a ele refletir sobre a arte: o belo existe? É um critério para se determinar o que é a arte? Ou haverá outros valores estéticos mais adequados para esse julgmento? (...) Compete ao filósofo, também, refletir sobre a condição humana atual: O que é o ser humano? O que é liberdade? O que é trabalho? 

(...) 

A filosofia quer encontrar o significado mais profundo dos fenômenos. Não basta saber como eles acontecem, mas o que significam na ordem geral do mundo humano. Ela também emite juízos de valor ao julgar cada fato, cada ação em relação ao todo. Ela também vai além daquilo que é, para propor o que poderia ser. É, portanto, indispensável para a vida de todos aqueles que desejam ser seres humanos completos, cidadãos livres e responsáveis por suas escolhas. 

texto selecionado e retirado do livro Temas de Filosofia, de Maria Lúcia de Arruda Aranha e Maria Helea Pires Martins (Editora Moderna, 2005)

sexta-feira, 16 de abril de 2021

Olympe de Gouges(1748-1793) - Rosa Montero - Nós, mulheres: grandes vidas femininas

 É curioso o papel da viuvez na vida das mulheres; foi, com frequência, a única via para conquistar a independência, e muitas enviuvaram abominando a institução do matrimônio. Foi o que aconteceu com Olympe, filha de um açougueiro de Montauban, na França. Seu esposo, muito mais velho que ela, morreu cedo, deixando-a com um filho e sem a menor vontade de se casar novamente. Olympe foi para Paris e viveu como escritora e dramaturga. Foi muito ativa na causa antiescravagista; escreveu duas obras de teatro e um ensaio político sobre o tema. O primeiro dos dois dramas, Le Esclavage des noirs [A escravidão dos negros], não só foi proibido como como também encarceraram brevemente a autora na Bastilha; após a Revolução, o drama foi por fim representado na Comédie-Française. Olympe era, naturalmente, revolucionária; em 1791 publicou sua famosa Declaração dos direitos da mulher e da cidadã, porque, como outras pessoas (entre elas, o filósofo Condoercet), acreditou que quando se falava em direitos do homem também estavam incluídos os da mulher. Equivocaram-se. Preocupada com os abusos de poder de Robespierre e de Marat, essa mulher honesta e corajosa criticou-os duramente. Foi detida em agosto de 1793. Da prisão pediu várias vezes, para ter chance de defesa, que fosse julgada pelos tribunais ordinários, em vez de ser enviada para o terrível tribunal revolucionário. Numa tentativa desesperada de se salvar, escreveu clandestinamente dois panfletos, Olympe de Gouges no tribunal revolucionário e Uma patriota perseguida, que conseguiu mandar para fora da prisão. Ambos os textos circularam em Paris e foram muito lidos, mas de nada adiantaram: em 2 de novembro de 1793 ela foi conduzida sem advogado para a pantomina do tribunal revolucionário. Foi para guilhotina do dis seguinte. Seu único filho renego-a publicamente após sua morte, talvez por medo de ser preso. 

MONTERO, Rosa, Nós, mulheres: grandes vidas femininas, tradução Josely Vianna Baptista, São Paulo: Todavia, 2020.

quinta-feira, 1 de abril de 2021

Conhecimento e Verdade

"Conhecimento e verdade são dois conceitos diferentes. Mas também são solidários. Nenhum conhecimento é a verdade; mas um conhecimento que não fosse verdadeiro não seria um conhecimento (seria um delírio, um erro, uma ilusão...). Nenhum conhecimento é absoluto; mas só é um conhecimento - e não simplesmente uma crença ou uma opinião - pela parte de absoluto que comporta ou autoriza. 

Seja, por exemplo, o movimento da Terra em torno do Sol. Ninguém pode conhecê-lo absolutamente, totalmente, perfeitamente. Mas sabemos que esse movimento existe e que se trata de um movimento de translação. As teorias de Copérnico e de Newton, por mais relativas que sejam (já que são teorias), são mais verdadeiras e mais seguras - logo, mais absolutas - do que as de Hiparco ou de Ptolomeu. [...] [Dizer que] todo conhecimento é relativo não significa que todos os conhecimentos se equivalem. O progresso de Newton e Einstein é tão inconteste quanto o que vai de Ptolomeu a Newton. [...]

No entanto, não se deve confundir conhecimentos com ciências, nem reduzir aqueles a estas. Você conhece seu endereço, sua data de nascimento, seus vizinhos, seus amigos, seus gostos, enfim, mil e uma coisas que nenhuma ciência ensina nem garante. A percepção já é um saber, a experiência já é um saber, ainda que vago [...], sem o qual qualquer ciência seria impossível. 'Verdade científica' não é, portanto, um pleonasmo: há verdades não científicas e teorias científicas que descobriremos um dia não serem verdadeiras. [...]

Sem dúvida temos certezas, várias das quais nos parecem certezas de direito (certezas absolutamente fundamentadas ou justificadas); mas 'a certeza de que há certezas de direito nunca é mais que uma certeza de fato'. Cumpre concluir que a certeza mais sólida, a todo rigor, não prova nada: não há provas absolutamente probatórios. 

Devemos então renunciar a pensar? De jeito nenhum. 'Pode ser que haja demonstrações verdadeiras', observa Pascal, 'mas não é certo'. De fato, isso é coisa que não se pode demonstrar - já que toda demonstração a supõe. [...] Que tudo é incerto, não é uma razão para parar de buscar a verdade. Porque tampouco é certo que tudo é incerto, observava ainda Pascal, e é isso que dá razão aos céticos ao mesmo tempo que os impede de prová-lo. [...] O ceticismo não é o contrário do racionalismo; é um racionalismo lúcido e leva às últimas consequências - até o ponto em que a razão, por rigor, chega a duvidar da sua aparente certeza. Pois o que prova uma aparência?

A sofística é outra coisa: não pensar que nada é certo, mas pensar que nada é verdadeiro. Isso nem Montaigne nem Hume jamais escreveram. Como, se tivessem acreditado, teriam podido filosofar e por que teriam filosofado? O ceticismo é o contrário do dogmatismo; a sofística, o contrário do racionalismo ou mesmo da filosofia. Se anda fosse verdadeiro, que restaria da nossa razão? Como poderíamos discutir, argumentar, conhecer? 'A cada qual sua verdade?' Se fosse assim, já não haveria verdade nenhuma, porque ela só vale se for universal. [...] Quem não vê os perigos que aí se escondem? Se podemos fazer qualquer coisa: a sofística conduz ao niilismo, assim como o niilismo leva à barbárie. [...]

É por isso que, também, nunca acabaremos de buscar. Não porque não conhecemos nada, o que não é muito verossímil, mas porque nunca conhecemos tudo. O grande Aristóteles, com o seu habitual senso de proporção, diz uma coisa impecável: 'A busca da verdade é ao mesmo tempo difícil e fácil: ninguém pode alcançá-la absolutamente, nem deixá-la escapar totalmente'.

Entre a ignorância absoluta e o saber absoluto, há lugar para o conhecimento e para o progresso dos conhecimentos. 

(Comte-Spoiville, André. Apresentação da filosofia, São Paulo:Martins Fontes, 2002, p.57-64) 

Sofística: no contexto, parte da lógica que estuda os sofismas ou argumentos falaciosos, que dão a ilusão de validade.

Niilismo: do Latim nihil, "nada". É a posição de quem não acredita em anda ou de quem perdeu valores e objetivos. 

             Material retirado do livro Filosofando: introdução à filosofia, de Maria Lúcia de Arruda Aranha e Maria Helena Pires Martins, 2016, p.81

quarta-feira, 31 de março de 2021

A visão mitológica do mundo

 Olá, Sofia! Temos muita coisa pela frente, por isso é bom começarmos logo.

Por filosofia entendemos uma forma completamente nova de pensar, surgida na Grécia por volta de 600a.C. Antes disso, todas as perguntas dos homens haviam sido respondidas pelas diferentes religiões. Essas explicações religiosas tinham sido passadas de geração para geração através dos mitos

Um mito é  a história de deuses e  tempo por objetivo explicar por que a vida é assim como é. 

Ao longo dos milênios, espalhou-se por todo o mundo uma diversificada gama de explicações mitológicas para as questões filosóficas. Os filósofos gregos tentaram provar que tais explicações não eram confiáveis.

A fim de entendermos o pensamento dos primeiros filósofos, precisamos entender primeiro o que significa ter uma visão mitológica do mundo. Vamos tomar por exemplo algumas concepções mitológicas aqui mesmo do Norte da Europa. Não há necessidade de irmos muito longe para mostrar o que queremos.

Na certa você já ouviu falar de Thor e de seu martelo. Antes de o cristianismo chegar a Noruega, acreditava-se aqui no Norte que Thor cruzava os céus numa carruagem puxada por dois bodes. E quando ele agitava seu martelo, produziam-se raios e trovões. A palavra "trovão" - Thor-den em norueguês - significa originariamente "o rugido de Thor". Em sueco, a palavra para trovão é aska, na verdade as-aka - que significa a jornada dos deuses no céu.

Quando troveja e relampeja, geralmente também chove. E a chuva era vital para os camponeses da era dos vikings. Assim, Thor era adorado como o deus da fertilidade.

A resposta mitológica a questão de saber por que chovia era, portanto, a de que Thor agitava seu martelo e, quando caía a chuva, as sementes germinavam e as plantas cresciam nos campos.

Não se entendia por que as plantas cresciam nos campos e como davam frutos. Mas os camponeses sabiam que isto tinha alguma coisa a ver com a chuva. Além disso, todos acreditavam que a chuva tinha algo a ver com Thor. E isto fazia dele um dos deuses mais importantes do Norte da Europa.

(...) Mas não se tratava apenas de explicações.
As pessoas não podiam simplesmente ficar sentadas de braços cruzados, esperando pela intervenção dos deuses, quando catástrofes tais como secas e epidemias as ameaçavam. As pessoas precisavam elas mesmas participar dessa luta contra o mal. E isto elas faziam através de toda a sorte de cerimônias ou rituais religiosos.

O principal ritual religioso na Antiguidade nórdica era o sacrifício. Oferecer alguma coisa em sacrifício a um deus significava aumentar o seu poder. As pessoas precisavam, por exemplo, oferecer sacrifícios aos deuses, a fim de que eles se fortalecessem o suficiente para vencer as forças do mal. Isto podia ser feito, por exemplo, sacrificando-se um animal. Presume-se que a Thor eram sacrificados sobretudo bodes. Para Odin sacrificavam-se às vezes também pessoas.

(...) Bem, acho que podemos parar par aqui com a história do mito, Sofia. Mas a que será que este mito em particular realmente quer nos dizer? É claro que ele não foi escrito em versos apenas para divertir. Também este mito quer explicar alguma coisa. E aqui vai uma interpretação possível:
Quando a seca assolava uma região, as pessoas precisavam de uma explicação para a total ausência de chuva. Não seria porque os trolls tinham roubado a martelo de Thor?

Podemos imaginar também que este mito tenta explicar a alternância das estações do ano: no inverno a natureza está morta, porque a martelo de Thor está em Jotunheim. Mas na primavera Thor consegue reavê-lo. E, assim, os mitos tentam explicar às pessoas algo que elas não conseguem entender.

Mas as pessoas não se contentavam apenas com explicações como esta que acabamos de ouvir. Elas também tentavam participar desses acontecimentos tão importantes para suas vidas. E o faziam através de diferentes rituais religiosos, que guardavam uma relação com os mitos. Assim, podemos imaginar que no caso da seca, ou de uma colheita ruim, as pessoas encenassem um drama que recontasse a história do mito. Talvez um homem da aldeia se fantasiasse de noiva usando pedras no lugar dos seios, a fim de reaver a martelo que estava em poder dos trolls. Era esta a forma que as pessoas viam de fazer alguma coisa para atrair chuva e fazer as sementes germinarem nos campos.

Embora não saibamos exatamente como tudo acontecia, uma coisa é certa: há muitos exemplos de outras partes do mundo que nos mostram que as pessoas encenavam um "mito das estações do ano", a fim de acelerar os processos naturais.

O que fizemos foi apenas um breve passeio pelo mundo dos mitos nórdicos. Há inúmeros outros mitos sobre Thor e Odin, Freyeja, Hod e Balder; e sobre muitas, muitas outras divindades. Visões míticas como estas existiam no mundo todo, muito antes de os filósofos começarem a questioná-las. Pois os gregos também tinham a sua visão mitológica do mundo, quando surgiram os primeiros filósofos. Ao longo dos séculos, as historias dos deuses foram sendo passadas de geração em geração. Na Grécia, os deuses eram chamados de Zeus e Apolo, Hera e Atena, Dioniso e Asclenio, Heracles e Hefafstos, apenas para citar alguns nomes.

Por volta de 700 a.c., Homero e Hesíodo registraram por escrito boa parte do tesouro da mitologia grega. Isto levou a uma situação completamente nova. É que, a partir do momento em que mitos foram colocados no papel, já se podia discutir sobre eles.

Os primeiros filósofos gregos criticaram a mitologia descrita por Homero, porque para eles os deuses ali representados tinham muitas semelhanças com os homens. De fato, eles eram exatamente tão egoístas e traiçoeiros como qualquer um de nós. Pela primeira vez na história da humanidade foi dito claramente que os mitos talvez não passassem de frutos da imaginação do homem.

Um exemplo dessa crítica aos mitos pode ser encontrado no Filósofo Xenófanes, nascido por volta de 570 a.c. Para ele, as pessoas teriam criado os deuses à sua própria imagem e semelhança: "Os mortais acreditam que os deuses nascem, falam e se vestem de forma semelhante à sua própria ... Os etíopes imaginam seus deuses pretos e de nariz achatado; os tracianos, ao contrário, os veem ruivos e de olhos azuis ... Se as vacas, cavalos ou leões tivessem mãos e com elas pudessem pintar e produzir obras como os homens, eles criariam e representariam suas divindades à sua imagem e semelhança: os deuses dos cavalos teriam feições equinas, os das vacas se pareceriam com elas, e assim por diante".

Nesta época, os gregos fundaram muitas cidades-Estados na Grécia e em suas colônias no Sul da Itália e na Ásia Menor. Nelas, os escravos faziam todo o serviço braçal e os cidadãos livres possam dedicar-se exclusivamente à política e à cultura. Sob tais condições de vida, o pensamento humano deu um salto: sem depender de nada nem de ninguém, cada indivíduo podia agora opinar sobre como a sociedade devia ser organizada. Desse modo, o indivíduo podia formular suas questões filosóficas sem ter que para isto recorrer à tradição dos mitos.

Dizemos que naquela época ocorreu a evolução de uma forma de pensar atrelada ao mito para um pensamento construído sobre a experiência e a razão. O objetivo dos primeiros filósofos gregos era o de encontrar explicações naturais para os processos da natureza...

Sofia resolveu andar um pouco pelo jardim. Ela tentava esquecer tudo o que tinha aprendido na escola, principalmente o que tinha lido nos livros de ciência.

Se ela tivesse crescido naquele jardim, sem saber qualquer coisa a respeito da natureza, o que seria a primavera para ela?

Será que ela inventaria uma explicação para o fato de um belo dia de repente começar a chover? Será que ela daria asas à imaginação para explicar por que a neve derrete e o sol se levanta no céu?

Sim, ela estava certa de que o faria. E imediatamente começou a inventar uma história:

o inverno agarrou a terra com suas mãos geladas, porque o malvado Muriat mantinha a bela princesa Sikita presa num frio calabouço. Certa manhã, porém, o valente príncipe Bravato veio e conseguiu libertá-la. Sikita ficou tão feliz que começou a dançar sobre os campos e prados, cantando uma canção que ela tinha composto durante seu cativeiro no frio calabouço. E a terra e as árvores ficaram tão enternecidas que toda a neve se desfez em lágrimas. Foi então que o Sol apareceu no céu e secou todas as lágrimas. Os passarinhos passaram a imitar a canção de Sikita, e, quando a bela princesa soltou seus cabelos loiros, algumas mechas douradas caíram no chão e se transformaram em lírios ...

Sofia achou que tinha inventado uma bela história. Se ela não conhecesse nenhuma outra explicação para a alternância das estações do ano, certamente teria acreditado na sua história.

Ela entendeu, então, que as pessoas sempre tiveram a necessidade de explicar os processos da natureza. Que elas talvez nem pudessem viver sem tais explicações: E por causa disso inventaram os mitos, pois naquela época ainda não existia a ciência.

GAARDER, Jostein, O Mundo de Sofia:Romance da história da filosofia, Tradução: João Azenha Jr,  18ª reimpressão,   Capítulo: Terceiro, São Paulo: Cia das Letras, 1995


quinta-feira, 25 de março de 2021

Mulheres na Filosofia?

 A história das mulheres na filosofia é marcada por numerosos desequilíbrios, dos quais o mais evidente - sua longa, muito longa ausência - tende a esconder os outros. Sabemos, é claro, que desde a Antiguidade e até o século XX, a sociedade patriarcal europeia reservou o estudo das letras a seus rebentos machos, de modo que principalmente a literatura e a filosofia acabaram sendo atividades reservadas aos homens. O monopólio da educação, da escrita, do debate, da publicação, manteve a maioria das mulheres longe dos conceitos filosóficos e daquilo que eles trazem de alegrias especulativas, de esforços literários e de lampejos libertadores. 

Mas não todas. Se voltarmos na história, encontraremos vestígios de numerosas mulheres, cujos pensamentos, e às vezes os escritos, marcaram sua época. São elas: na Grécia, Fíntis, Temista e Hipátia, famosa neoplatônica falecida em 415; no mundo cristão, Hildegarda de Bingen (1098-1179), Catarina de de Siena (1347-1380) e ainda Cristina de Pisano (1364-1430); no mundo islâmico, Fatima bint al-Muthanna, também conhecida como Fátima de Córdova (século XII). Se, com frequência, essas exceções não encontraram espaço na história da filosofia, é em parte porque a Grande Narrativa, que entoa invariavelmente os nomes de Sócrates, Platão, Aristóteles, Averróis, Tomás de Aquino, Descartes, Leibniz, Rousseau, Kant, e assim por diante, continua a ser uma história de homens e para sua própria glória. 

Assim, devemos admitir que um dos principais instrumentos do machismo contemporâneo não está apoiado apenas em milênios de dominação e de falsas evidências, promulgadas por instituições, práticas, construções teóricas e jurídicas, que colocavam as mulheres em situação de inferioridade com relação aos homens. Ele consiste também em inculcar a ideia - amplamente difundida pelas próprias mulheres e feministas - de um passado sem partilha, uniformemente masculino, como se a história da filosofia, a história intelectual em geral, talvez até mesmo a integridade da história europeia, pudesse ter se desenrolado durante dois ou três milênios simplesmente sem a presença das mulheres. 

Assim, lutar contra o desaparecimento das fontes, que testemunham que houve mulheres para superar a dominação masculina e homens para denunciá-las, constitui uma etapa  inevitável para repensar o todo da narrativa que produzimos sobre as relações dessas mulheres ao longo da história. Ao reequilibrar a maneira de contar a história da filosofia, não se está negando a realidade da dominação, nem tapando o sol com a peneira. Trata-se de superar o silêncio com o qual uma história exclusivamente masculina quer recobrir as importantes contribuições trazidas ao pensamento pelas mulheres e pelas questões levantadas por elas. 

(...) Para que isso seja possível, é indispensável tornar as fontes acessíveis, a fim de que todas e todos nós possamos consultá-las e fazer com que sejam consultadas. (Rovere, Maxime)

Arqueofeminismo: mulheres filósofas e filósofos feministas século XVII-XVIII, org. Maxime Rovere, São Paulo:n-1 edições, 2019.  


 

quarta-feira, 24 de março de 2021

O que é Filosofia? (O mundo de Sofia - Romance da história da filosofia - Jostein Gaarder)

Querida Sofia, 

Muitas pessoas têm hobbies diferentes. Algumas colecionam moedas e selos antigos, outras gostam de trabalhos manuais, outras ainda dedicam quase todo o seu tempo livre a uma determinada modalidade de esporte.

Também há os que gostam de ler. Mas os tipos de leitura também são muito diferentes. Alguns lêem apenas jornais ou gibis, outros gostam de romances, outros ainda preferem livros sobre temas diversos como astronomia, a vida dos animais ou as novas descobertas da tecnologia.

Se me interesso por cavalos ou pedras preciosas, não posso querer que todos os outros tenham o mesmo interesse. Se fico grudado na televisão assistindo a todas as transmissões de esporte, tenho que aceitar que outras pessoas achem o esporte uma chatice.

Mas será que existe alguma coisa que interessa a todos? Será que existe alguma coisa que concerne a todos, não importando quem são ou onde se encontram? Sim, querida Sofia, existem questões que deveriam interessar a todas as pessoas. E é sobre tais questões que trata este curso.

Qual é a coisa mais importante da vida? Se fazemos esta pergunta a uma pessoa de um país assolado pela fome, a resposta será: a comida. Se fazemos a mesma pergunta a quem está morrendo de frio, então a resposta será: o calor. E quando perguntamos a alguém que se sente sozinho e isolado, então certamente a resposta será: a companhia de outras pessoas.

Mas, uma vez satisfeitas todas essas necessidades, será que ainda resta alguma coisa de que todo mundo precise? Os filósofos acham que sim. Eles acham que o ser humano não vive apenas de pão. É claro que todo mundo precisa comer. E precisa também de amor e de cuidado. Mas ainda há uma coisa de que todos nós precisamos. Nós temos a necessidade de descobrir quem somos e por que vivemos.

Portanto, interessar-se em saber por que vivemos não é um interesse "casual" como colecionar selos, por exemplo. Quem se interessa por tais questões toca um problema que vem sendo discutido pelo homem praticamente desde quando passamos a habitar este planeta. A questão de saber como surgiu o universo, a Terra e a vida por aqui é uma questão maior e mais importante do que saber quem ganhou mais medalhas de ouro nos últimos Jogos Olímpicos.

O melhor meio de se aproximar da filosofia é fazer perguntas filosóficas:

Como o mundo foi criado? Será que existe uma vontade ou um sentido por detrás do que ocorre? Há vida depois da morte? Como podemos responder a estas perguntas? E, principalmente: como devemos viver?

Essas perguntas têm sido feitas pelas pessoas de todas as épocas. Não conhecemos nenhuma cultura que não se tenha perguntado quem é o ser humano e de onde veio o mundo.

Basicamente, não há muitas perguntas filosóficas para se fazer. Já fizemos algumas das mais importantes. Mas a história nos mostra diferentes respostas para cada uma dessas perguntas que estamos fazendo.

É mais fácil, portanto, fazer perguntas filosóficas do que respondê-las.

Da mesma forma, hoje em dia cada um de nós deve encontrar a sua resposta para estas perguntas. Não dá para procurar numa enciclopédia se existe um Deus, ou se há vida após a morte. A enciclopédia também não nos diz como devemos viver. Mas a leitura do que outras pessoas pensaram pode nos ser útil quando precisamos construir nossa própria imagem do mundo e da vida.

A busca dos filósofos pela verdade pode ser comparada com uma história policial. Alguns acham que Andersen é o criminoso; outros acham que é Nielsen ou Jepsen. Um crime na vida real pode chegar a ser desvendado pela polícia um dia. Mas também podemos imaginar que a polícia nunca consiga solucionar determinado caso, embora a solução para ele esteja em algum lugar. 

Mesmo que seja difícil responder a uma pergunta, isto não significa que ela não tenha uma - e só uma - reposta certa. Ou há algum tipo de vida depois da morte, ou não. 

Muitos dos antigos enigmas foram resolvidos pela ciência ao longo dos anos. Antigamente, um grande enigma era saber como era o lado escuro da Lua. Não era possível chegar a uma resposta apenas através de discussão; a resposta ficava par a imaginação de cada um. Hoje, porém, sabemos exatamente como é o lado escuro da Lua. Não dá mais para "acreditar" que há um homem morando na Lua, nem que ela é um grande queijo, todo cheio de buracos. 

Um dos antigos filósofos gregos, que viveu há mais de dois mil anos, acreditava que a filosofia era fruto da capacidade do homem de se admirar com as coisas. Ele achava que para o homem a vida é algo tão singular que as perguntas filosóficas surgem como que espontaneamente. É como o que ocorre quando assistimos a um truque de mágica: não conseguimos entender como é possível acontecer aquilo que estamos vendo diante dos nossos olhos. E então, depois de assistirmos à apresentação, nos perguntamos: como é que o mágico conseguiu transformar dois lenços de seda brancos num coelhinho vivo?

Para muitas pessoas, o mundo é tão incompreensível quanto o coelhinho que um mágico tira de uma cartola que, há poucos instantes, estava vazia. 

No caso do coelhinho, sabemos perfeitamente que o mágico nos iludiu. Quando falamos sobre o mundo, as coisas são um pouco diferentes. Sabemos que o mundo não é mentira ou ilusão, pois estamos vivendo nele, somos parte dele. No fundo, somos o coelhinho branco que é tirado da cartola. A única diferença entre nós e o coelhinho branco é que o coelhinho não sabe que está participando de um truque de mágica. Conosco é diferente. Sabemos que estamos fazendo parte de algo misterioso e gostaríamos de poder explicar como tudo funciona. 

PS. Quanto ao coelhinho branco, talvez seja melhor compará-lo com todo o universo. Nós, que vivemos aqui, somos os bichinhos microscópicos que vivem na base dos pelos do coelho. Mas os filósofos tentam subir da base para a ponta dos finos pelos, a fim de poder olhar dentro dos olhos do grande mágico. 

GAARDER, JOSTEIN, O mundo de Sofia: romance da história da filosofia, tradução João Azenha Jr., São Paulo: Companhia das Letras, 1995. 



terça-feira, 23 de março de 2021

Nós, Mulheres (Rosa Monteiro)

 (trechos selecionados da Introdução)

Há alguns séculos, nós, seres humanos, começamos a nos perguntar por que as sociedades diferenciavam de tal modo homens e mulheres quanto a hierarquias e funções. Alguma fêmea especialmente intrépida já se fizera essas perguntas antes, a exemplo da francesa Christine de Pisan, que escreveu em 1405 La Cité des dames [A cidade das damas]; mas foi preciso que viesse o positivismo e a morte definitiva dos deuses para que os habitantes do mundo ocidental passassem a se perguntar massivamente o porquê das cosias, curiosidade intelectual que inclui, forçosamente, e apesar da resistência de muitos e muitas, os numerosos questionamentos relativos à condição da mulher: diferente, distante, subjugada.

E ainda não há, na verdade, resposta clara para essas perguntas: como se estabeleceram as hierarquias, quando isso aconteceu, se sempre foi assim. Cunharam-se teorias, nenhuma delas suficientemente demonstrada, que falam de uma primeira etapa de matriarcado na humanidade. De grandes deusas onipotentes, como a Deusa Branca mediterrânea descrita por Robert Graves. Talvez não fosse uma etapa do matriarcado, mas simplesmente de igualdade social entre os sexos, com domínios específicos para umas e outros. A mulher paria, e essa impressionante capacidade deve tê-la tornado muito poderosa. Expressam esse poder as vênus da fertilidade vindas da pré-história (como a de Willendorf: gorda, roliça, deliciosa), bem como as múltiplas figuras femininas posteriores, as fortes deusas de pedra do Neolítico. 

Engels sustentava que a subordinação da mulher se originou ao mesmo tempo que a propriedade privada e a família, quando os seres humanos deixaram de ser nômades e se assentaram em povoações agricultoras; o homem, diz Engels, precisava assegurar filhos próprios a quem transmitir suas posses, daí que passasse a controlar a mulher. Fico pensando que talvez o dom procriador das fêmeas assustasse demais os varões, sobretudo quando eles viraram camponeses. Antes, na vida errante e caçadora, o valor de ambos os sexos estava claramente estabelecido: elas pariam, amamentavam, criavam; eles caçavam, defendiam. Funções de valor intercambiável, fundamentais. Mas depois, na vida agrícola, o que os homens faziam de específico? As mulheres podiam cuidar da terra como eles ou, quem sabe, de um ponto de vista mágico, ainda melhor, porque a fertilidade era seu reino, seu domínio. Sim, é razoável pensar que eles deviam vê-las como demasiado poderosas. Talvez o impulso masculino de controle tenha nascido desse medo (e da vantagem de eles serem mais fortes fisicamente).

Esse receio do poder das mulheres é perceptível já nos mitos inaugurais de nossa cultura, nos relatos da criação do mundo, que, por um lado, se esforçam para definir o papel subsidiário das fêmeas, mas ao mesmo tempo nos conferem uma capacidade de causar prejuízo muito acima de nossa posição secundária. Eva leva Adão e toda a humanidade à perdição por se deixar tentar pela serpente, o que é feito também por Pandora, a primeira mulher, segundo a mitologia grega, criada por Zeus para castigar os homens: o deus dá a Pandora uma ânfora cheia de desgraças, jarra que a mulher destapa movida por sua irrefreável curiosidade feminina, libertando assim todos os males. Esses dois relatos primordiais apresentam a fêmea como um ser fraco, avoado e sem juízo. Por outro lado, a curiosidade é um ingrediente básico da inteligência, e é a mulher que tem, nesses mitos, a ousadia de se perguntar o que há além, a vontade de descobrir o que está oculto. Além disso, os males que Eva e Pandora trazem ao mundo são a mortalidade, a doença, o tempo, condições que formam a própria substância do humano, de modo que, na verdade, a lenda lhes atribui um papel - agridoce mas imenso - enquanto criadoras da humanidade. 

(...) Os historiadores, os enciclopedistas, os acadêmicos, os guardiães da cultura oficial e da memória pública sempre foram homens, e os atos e as obras das mulheres raramente passaram para os anais. Porém, hoje essa amnésia sexista por fim está mudando: a crescente presença feminina nos níveis acadêmicos e eruditos começa a normalizar a situação, e abriu-se todo um campo de novas pesquisas, feitas majoritariamente por mulheres, que tentam resgatar nossas antepassadas da bruma. 

Antepassadas capazes de levar a cabo proezas anônimas tão imensas como a invenção, na província chinesa de Hunan, de uma linguagem secreta. Ou melhor, de uma caligrafia só para mulheres, uma forma de escrita críptica chamada nushu, que conta com  mil caracteres e foi criada há, no mínimo, mil anos (alguns especialistas chegam a falar em 6 mil), ainda que hoje em dia só meia dúzia de anciãs octogenárias a conheçam. 

(...) Corajosas e anônimas, sim, assim foram milhões de mulheres do passado. Segundo as últimas teorias acadêmicas, talvez os textos anônimos da história da literatura tenham justamente saído, em sua maioria, de penas femininas. Em outros casos, as mulheres escreviam obras que depois seus cônjuges (ou seus homens: pais, irmãos, filhos) publicavam, como é o caso da espanhola María Martínez Sierra (1874-1974), socialista e feminista, deputada da Segunda República e importante dramaturga, cujos trabalhos foram publicados, no entanto, sob o nome de seu marido. 

(...) Ou seja, metade da humanidade, a parte feminina, viveu durante milênios uma existência frequentemente clandestina (como foram clandestinos, muitas vezes, esses amantes jovens, ou como o era o nushu, a linguagem secreta), e em grande medida esquecida, mas sempre acima dos preconceitos e dos estereótipos. Com este livro, só almejo, enfim, dar uma breve olhada nessas trevas. Porque há uma história que não está na história e que só pode ser resgatada aguçando-se o ouvido e escutando os sussurros das mulheres. 

MONTERO, Rosa, Nós, mulheres: grandes vidas femininas, tradução Josely Vianna Baptista, São Paulo: Todavia, 2020.



A arte de viver - Epicteto

 As coisas em si não nos ferem ou nos criam obstáculos. Nem as outras pessoas. A questão está na forma como as encaramos. São nossas atitudes e reações que nos criam problemas. 

Sendo assim, até a morte deixa de ser tão importante. É a nossa noção da morte, a ideia que fazemos dela que é terrível, que nos aterroriza. Existem muitas maneiras de pensar na morte. Examine suas noções a respeito da morte - e também sobre tudo o mais. Essas noções são de fato verdadeiras? Fazem algum bem a você? Não tema a morte ou a dor, tema o medo da morte ou da dor. 

Não podemos escolher as circunstâncias externas de nossa vida, mas sempre podemos escolher a maneira como reagimos a elas. (p.30)

 

Existem tempo e lugar certos para diversão e distração, mas nunca permita que elas se sobreponham aos seus verdadeiros objetivos pessoais. Se você estivesse viajando e o navio ancorasse em uma enseada, você poderia ir a terra em busca de água e no caminho parar para pegar uma concha ou colher uma planta. Mas precisaria ter cuidado e ouvir o chamado do capitão, manter-se atento ao navio. Distrair-se com bobagens é a coisa mais fácil do mundo.  Se o capitão chamasse, você teria de estar pronto para deixar de lado essas distrações e voltar correndo, talvez até sem tempo de olhar para trás.

Se você não for jovem, não se afaste muito do navio ou poderá não ter tempo de chegar lá quando o chamarem. (p.34)

 

EPICTETO, A arte de viver, trad. Maria Luiza Newlands da Silveira, Rio de Janeiro: Sextante, 2018.



 

Igualdade entre homens e mulheres (1622) - Marie de Gournay

  “A maioria dos que defendem a causa das mulheres, lutando contra essa orgulhosa preferência que os homens se atribuem, lhes dá o troco com...