A história das mulheres na filosofia é marcada por numerosos desequilíbrios, dos quais o mais evidente - sua longa, muito longa ausência - tende a esconder os outros. Sabemos, é claro, que desde a Antiguidade e até o século XX, a sociedade patriarcal europeia reservou o estudo das letras a seus rebentos machos, de modo que principalmente a literatura e a filosofia acabaram sendo atividades reservadas aos homens. O monopólio da educação, da escrita, do debate, da publicação, manteve a maioria das mulheres longe dos conceitos filosóficos e daquilo que eles trazem de alegrias especulativas, de esforços literários e de lampejos libertadores.
Mas não todas. Se voltarmos na história, encontraremos vestígios de numerosas mulheres, cujos pensamentos, e às vezes os escritos, marcaram sua época. São elas: na Grécia, Fíntis, Temista e Hipátia, famosa neoplatônica falecida em 415; no mundo cristão, Hildegarda de Bingen (1098-1179), Catarina de de Siena (1347-1380) e ainda Cristina de Pisano (1364-1430); no mundo islâmico, Fatima bint al-Muthanna, também conhecida como Fátima de Córdova (século XII). Se, com frequência, essas exceções não encontraram espaço na história da filosofia, é em parte porque a Grande Narrativa, que entoa invariavelmente os nomes de Sócrates, Platão, Aristóteles, Averróis, Tomás de Aquino, Descartes, Leibniz, Rousseau, Kant, e assim por diante, continua a ser uma história de homens e para sua própria glória.
Assim, devemos admitir que um dos principais instrumentos do machismo contemporâneo não está apoiado apenas em milênios de dominação e de falsas evidências, promulgadas por instituições, práticas, construções teóricas e jurídicas, que colocavam as mulheres em situação de inferioridade com relação aos homens. Ele consiste também em inculcar a ideia - amplamente difundida pelas próprias mulheres e feministas - de um passado sem partilha, uniformemente masculino, como se a história da filosofia, a história intelectual em geral, talvez até mesmo a integridade da história europeia, pudesse ter se desenrolado durante dois ou três milênios simplesmente sem a presença das mulheres.
Assim, lutar contra o desaparecimento das fontes, que testemunham que houve mulheres para superar a dominação masculina e homens para denunciá-las, constitui uma etapa inevitável para repensar o todo da narrativa que produzimos sobre as relações dessas mulheres ao longo da história. Ao reequilibrar a maneira de contar a história da filosofia, não se está negando a realidade da dominação, nem tapando o sol com a peneira. Trata-se de superar o silêncio com o qual uma história exclusivamente masculina quer recobrir as importantes contribuições trazidas ao pensamento pelas mulheres e pelas questões levantadas por elas.
(...) Para que isso seja possível, é indispensável tornar as fontes acessíveis, a fim de que todas e todos nós possamos consultá-las e fazer com que sejam consultadas. (Rovere, Maxime)
Arqueofeminismo: mulheres filósofas e filósofos feministas século XVII-XVIII, org. Maxime Rovere, São Paulo:n-1 edições, 2019.
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