quarta-feira, 1 de setembro de 2021

Sentidos de "moral"

Conhece-se a ambiguidade [da] palavra [moral]. Por "moral" entende-se (i) um conjunto de valores e regras de ação propostas aos indivíduos e aos grupos por intermédio de aparelhos prescritivos diversos, como podem ser a família, as instituições educativas, as Igrejas, etc. Acontece de essas regras e valores serem bem explicitamente formulados numa doutrina coerente e num ensinamento explícito. Mas acontece também de elas serem transmitidas de maneira difusa e, longe de formarem um conjunto sistemático, constituírem um jogo complexo de elementos que se compensam, se corrigem, se anulam em certos pontos, permitindo, assim, compromissos ou escapatórias. Com essas reservas pode-se chamar "código moral" esse conjunto prescritivo. Porém, por "moral" entende-se igualmente (ii) o comportamento real dos indivíduos em relação às regras e aos valores que lhes são propostos: designa-se, assim, a maneira pela qual eles se submetem mais ou menos completamente ao um princípio de conduta; pela qual eles obedecem ou resistem a uma interdição ou a uma prescrição; pela qual eles respeitam ou negligenciam um conjunto de valores; (...)

Em suma, para ser dita "moral" uma ação não deve se reduzir a um ato ou a uma série de atos conformes a uma regra, lei ou valor. É verdade que toda ação moral comporta uma relação ao real em que se efetua, e uma relação ao código a que se refere; mas ela implica também uma certa relação a si; essa relação não é simplesmente "consciência de si", mas constituição de si enquanto "sujeito moral", na qual o indivíduo circunscreve a parte dele mesmo que constitui o objeto dessa prática moral, define sua posição em relação ao preceito que respeita, estabelece para si um certo modo de ser que valerá como realização moral dele mesmo;e, para tal, age sobre si mesmo, procura conhecer-se, controla-se, põe à prova, aperfeiçoa-se, transforma-se. 

Foucault, M, O uso dos prazeres, in Textos básicos de ética: de Platão a Foucault, de Danilo Marcondes.

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