“Afirmar a bondade do prazer é escandaloso no Ocidente.”
A espiritualidade ocidental foi construída sobre a negação do prazer.
As feridas e lacerações que a espiritualidade católica elegeu como
objetos de adoração são expressões plásticas desse fato. E o ascetismo e
disciplina de trabalho, virtudes supremas do protestantismo, são a sua
manifestação racional e moral.
(...) Mas eu acredito que vivemos para ter prazer. Bachelard era mais ousado
do que eu e não se envergonhava de afirmar: “O universo tem, para além
de todas as misérias, um destino de felicidade. O homem deve reencontrar
o Paraíso”. (...) O destino da razão é servo do prazer e da alegria. Creio na função
educativa e intelectual do prazer. Uma inteligência feliz é uma
inteligência... mais inteligente...
(...)
Por muito tempo, influenciado pela psicanálise, usei a
palavra “prazer” para me referir ao impulso fundamental que movimenta o
corpo. Hoje a palavra prazer já não me satisfaz. O corpo não se contenta
com o prazer. Uma das muitas amantes de Tomás dizia: “Eu não quero
prazer. Eu quero é alegria!”. A
experiência do prazer, tão boa, sempre nos coloca diante de um vazio. A
teologia de santo Agostinho se constrói sobre esse vazio que se segue ao
prazer. Depois de esgotado o prazer, existe, na alma, a nostalgia por
algo indefinível. Que indefinível é esse que, se encontrado, nos traria a
alegria? Estou pronto a concordar com o santo: um indefinível que, se
encontrado, me traria alegria, eu o adoraria como deus, a ele entregaria
a minha vida.
Pus-me então a pensar sobre a diferença entre prazer e alegria – ambos muito bons. E estas foram as conclusões a que cheguei.
Sobre o prazer:
(1)
O prazer só acontece se o corpo tiver a posse do seu objeto. O prazer
do sorvete só existe se houver um sorvete a ser lambido. O prazer do
suco de pitanga só existe se houver suco de pitanga para ser bebido. O
prazer do beijo só existe se houver a pessoa amada a ser beijada.
(2)
O prazer se farta logo. Quantos sorvetes sou capaz de tomar antes que
ele se transforme de objeto de prazer em causa de sofrimento? Quantos
copos de suco de pitanga sou capaz de tomar antes que o corpo diga: “Não
aguento mais!?”. Quantos beijos se pode dar na pessoa amada antes de
enjoar? O prazer tem vida curta. O evangelho do prazer reza:
“Bem-aventurados os que têm fome, porque serão fartos”.
Sobre a alegria:
(1)
A alegria não precisa da posse do objeto desejado para existir.
Lembro-me do rosto de um amigo – ele já morreu –, mas esta simples
memória me traz alegria, junto com uma pitada de tristeza. Sentimos
alegria lendo uma obra de ficção, um objeto que nunca existiu pode nos
dar alegria, como é o romance entre Fiorentino Ariza e Firmina Daza120 ou o filme A festa de Babette.
Paul Valéry: “Que somos nós sem o socorro das coisas que não existem?”.
Que seres estranhos nós somos, capazes de nos alegrar comendo frutos
inexistentes!
(2) A alegria nunca se farta. A
alegria pede mais alegria. Alegria é fome insaciável. Da alegria nunca
se diz: “Estou satisfeito!”, “Chega!”. O evangelho da alegria é
diferente do evangelho do prazer: “Bem-aventurados os que têm fome,
porque terão mais fome”.
Mas, vez por outra, a
alegria e o prazer acontecem juntos. Quando isso acontece, o corpo
experimenta uma efêmera epifania do Paraíso: o divino se faz carne...
Alves, Rubem, Variações sobre o Prazer, 6ª edição, São Paulo: Planeta, 2011.
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