(...) Mas não se tratava apenas de explicações.
As pessoas não podiam simplesmente ficar sentadas de braços cruzados, esperando pela intervenção dos deuses, quando catástrofes tais como secas e epidemias as ameaçavam. As pessoas precisavam elas mesmas participar dessa luta contra o mal. E isto elas faziam através de toda a sorte de cerimônias ou rituais religiosos.
O principal ritual religioso na Antiguidade nórdica era o sacrifício. Oferecer alguma coisa em sacrifício a um deus significava aumentar o seu poder. As pessoas precisavam, por exemplo, oferecer sacrifícios aos deuses, a fim de que eles se fortalecessem o suficiente para vencer as forças do mal. Isto podia ser feito, por exemplo, sacrificando-se um animal. Presume-se que a Thor eram sacrificados sobretudo bodes. Para Odin sacrificavam-se às vezes também pessoas.
(...) Bem, acho que podemos parar par aqui com a história do mito, Sofia. Mas a que será que este mito em particular realmente quer nos dizer? É claro que ele não foi escrito em versos apenas para divertir. Também este mito quer explicar alguma coisa. E aqui vai uma interpretação possível:
Quando a seca assolava uma região, as pessoas precisavam de uma explicação para a total ausência de chuva. Não seria porque os trolls tinham roubado a martelo de Thor?
Podemos imaginar também que este mito tenta explicar a alternância das estações do ano: no inverno a natureza está morta, porque a martelo de Thor está em Jotunheim. Mas na primavera Thor consegue reavê-lo. E, assim, os mitos tentam explicar às pessoas algo que elas não conseguem entender.
Mas as pessoas não se contentavam apenas com explicações como esta que acabamos de ouvir. Elas também tentavam participar desses acontecimentos tão importantes para suas vidas. E o faziam através de diferentes rituais religiosos, que guardavam uma relação com os mitos. Assim, podemos imaginar que no caso da seca, ou de uma colheita ruim, as pessoas encenassem um drama que recontasse a história do mito. Talvez um homem da aldeia se fantasiasse de noiva usando pedras no lugar dos seios, a fim de reaver a martelo que estava em poder dos trolls. Era esta a forma que as pessoas viam de fazer alguma coisa para atrair chuva e fazer as sementes germinarem nos campos.
Embora não saibamos exatamente como tudo acontecia, uma coisa é certa: há muitos exemplos de outras partes do mundo que nos mostram que as pessoas encenavam um "mito das estações do ano", a fim de acelerar os processos naturais.
O que fizemos foi apenas um breve passeio pelo mundo dos mitos nórdicos. Há inúmeros outros mitos sobre Thor e Odin, Freyeja, Hod e Balder; e sobre muitas, muitas outras divindades. Visões míticas como estas existiam no mundo todo, muito antes de os filósofos começarem a questioná-las. Pois os gregos também tinham a sua visão mitológica do mundo, quando surgiram os primeiros filósofos. Ao longo dos séculos, as historias dos deuses foram sendo passadas de geração em geração. Na Grécia, os deuses eram chamados de Zeus e Apolo, Hera e Atena, Dioniso e Asclenio, Heracles e Hefafstos, apenas para citar alguns nomes.
Por volta de 700 a.c., Homero e Hesíodo registraram por escrito boa parte do tesouro da mitologia grega. Isto levou a uma situação completamente nova. É que, a partir do momento em que mitos foram colocados no papel, já se podia discutir sobre eles.
Os primeiros filósofos gregos criticaram a mitologia descrita por Homero, porque para eles os deuses ali representados tinham muitas semelhanças com os homens. De fato, eles eram exatamente tão egoístas e traiçoeiros como qualquer um de nós. Pela primeira vez na história da humanidade foi dito claramente que os mitos talvez não passassem de frutos da imaginação do homem.
Um exemplo dessa crítica aos mitos pode ser encontrado no Filósofo Xenófanes, nascido por volta de 570 a.c. Para ele, as pessoas teriam criado os deuses à sua própria imagem e semelhança: "Os mortais acreditam que os deuses nascem, falam e se vestem de forma semelhante à sua própria ... Os etíopes imaginam seus deuses pretos e de nariz achatado; os tracianos, ao contrário, os veem ruivos e de olhos azuis ... Se as vacas, cavalos ou leões tivessem mãos e com elas pudessem pintar e produzir obras como os homens, eles criariam e representariam suas divindades à sua imagem e semelhança: os deuses dos cavalos teriam feições equinas, os das vacas se pareceriam com elas, e assim por diante".
Nesta época, os gregos fundaram muitas cidades-Estados na Grécia e em suas colônias no Sul da Itália e na Ásia Menor. Nelas, os escravos faziam todo o serviço braçal e os cidadãos livres possam dedicar-se exclusivamente à política e à cultura. Sob tais condições de vida, o pensamento humano deu um salto: sem depender de nada nem de ninguém, cada indivíduo podia agora opinar sobre como a sociedade devia ser organizada. Desse modo, o indivíduo podia formular suas questões filosóficas sem ter que para isto recorrer à tradição dos mitos.
Dizemos que naquela época ocorreu a evolução de uma forma de pensar atrelada ao mito para um pensamento construído sobre a experiência e a razão. O objetivo dos primeiros filósofos gregos era o de encontrar explicações naturais para os processos da natureza...
Sofia resolveu andar um pouco pelo jardim. Ela tentava esquecer tudo o que tinha aprendido na escola, principalmente o que tinha lido nos livros de ciência.
Se ela tivesse crescido naquele jardim, sem saber qualquer coisa a respeito da natureza, o que seria a primavera para ela?
Será que ela inventaria uma explicação para o fato de um belo dia de repente começar a chover? Será que ela daria asas à imaginação para explicar por que a neve derrete e o sol se levanta no céu?
Sim, ela estava certa de que o faria. E imediatamente começou a inventar uma história:
o inverno agarrou a terra com suas mãos geladas, porque o malvado Muriat mantinha a bela princesa Sikita presa num frio calabouço. Certa manhã, porém, o valente príncipe Bravato veio e conseguiu libertá-la. Sikita ficou tão feliz que começou a dançar sobre os campos e prados, cantando uma canção que ela tinha composto durante seu cativeiro no frio calabouço. E a terra e as árvores ficaram tão enternecidas que toda a neve se desfez em lágrimas. Foi então que o Sol apareceu no céu e secou todas as lágrimas. Os passarinhos passaram a imitar a canção de Sikita, e, quando a bela princesa soltou seus cabelos loiros, algumas mechas douradas caíram no chão e se transformaram em lírios ...
Sofia achou que tinha inventado uma bela história. Se ela não conhecesse nenhuma outra explicação para a alternância das estações do ano, certamente teria acreditado na sua história.
Ela entendeu, então, que as pessoas sempre tiveram a necessidade de explicar os processos da natureza. Que elas talvez nem pudessem viver sem tais explicações: E por causa disso inventaram os mitos, pois naquela época ainda não existia a ciência.
GAARDER, Jostein, O Mundo de Sofia:Romance da história da filosofia, Tradução: João Azenha Jr, 18ª reimpressão, Capítulo: Terceiro, São Paulo: Cia das Letras, 1995
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