Para compreender bem o poder político, e derivá-lo da sua origem, devemos considerar em que estado se encontram por natureza os homens, o qual é um estado de perfeita liberdade para ordenar as suas ações, dispor das suas posses e pessoas, como bem lhes aprouver, dentro dos limites da lei natural, sem ter de pedir licença, nem depender da vontade qualquer outro homem.
É também um estado de igualdade em que todo o poder e jurisdição são recíprocos, não tendo um homem mais do que o outro; não há nada mais evidente do que criatura da mesma espécie e categoria, que nasceram para gozar os mesmos benefícios da natureza e para usar as mesmas faculdades, deverem também ser iguais entre si, sem subordinação, nem sujeição (...).
(...) Embora se trate de um estado de liberdade, não se trata de um estado de licenciosidade. Apesar de o homem nesse estado gozar de uma liberdade incontrolável para dispor da sua pessoa e do que possui não goza da liberdade para se destruir a si mesmo, nem nenhuma criatura que esteja na sua posse, a menos que um fim mais nobre do que a sua simples preservação o exija. O estado de natureza é governado por uma lei natural a que todos estão sujeitos. A razão, que é essa lei, ensina a humanidade inteira que a consultar que, sendo todos iguais e independentes, ninguém deve lesar outro na sua vida, na sua saúde, na sua liberdade, nem nas suas posses.
(...) Para que se possa impedir que alguns violem os diretos dos outros homens e se prejudiquem mutuamente, e para que se observe a lei natural, que ordena a paz e a preservação da humanidade, a execução da lei natural, nesse estado, é colocada nas mãos de todos e de cada um. Daí resulta que todos os homens têm o direito de punir os transgressores da lei natural, tanto quanto for necessário para prevenir a sua violação.
(...) Assim, no estado de natureza um homem adquire poder sobre outro, mas não se trata de um poder absoluto ou arbitrário para lidar com um criminoso, quando está à sua mercê, segundo o ardor das paixões ou a extravagância ilimitada da sua vontade.
(...) O estado de guerra é um estado de inimizade e destruição; por conseguinte, aquele que, por palavras ou por atos, declara um desígnio, não apaixonado e repentino, mas calmo e firme, contra a vida de outro homem coloca-se num estado de guerra com o homem a quem declarou tal intenção, e expõe assim a sua vida ao poder do outro, que pode tirá-la, ou de qualquer um que se junte a ele na sua defesa e o apoie na sua querela. É razoável e justo que eu tenha o direito de destruir o que me ameaça com a destruição. Segundo a lei fundamental da natureza, o homem deve preservar-se tanto quanto possível; quando nem todos podem ser preservados, deve-se preferir a segurança do inocente.
(...) Quer consultemos a razão natural, que nos diz que os homens quando nascem têm direito à sua preservação e, por conseguinte, à comida e à bebida, e às outras coisas que a natureza fornece para a sua subsistência;
(...) Embora a terra e todas as criaturas inferiores pertençam em comum a todos os homens, no entanto todo o homem tem a propriedade da sua própria pessoa. A esta mais ninguém tem direito senão ele. O trabalho do seu corpo e obra das suas mãos, podemos dizer, são propriamente dele. Sempre que ele retira seja o que for do estado em que a natureza o colocou, e aí o deixou, misturou seu trabalho com esse objeto, e acrescentou-lhe algo que lhe é próprio, e assim converte-o em propriedade sua. Ao se extrair este objeto ao estado comum em que a natureza o colocou, foi-lhe acrescentado algo por intermédio do trabalho que exclui o direito comum dos outros homens. Por este trabalho ser propriedade inquestionável do trabalhador, nenhum outro homem pode ter direito ao objeto a que o trabalho se ajuntou, pelo menos desde que o que permaneça em comum seja suficiente e igualmente bom para os outros.
(...) A medida da propriedade foi bem estabelecida pela natureza, limitando-a à extensão do trabalho dos homens e às conveniências da vida. O trabalho de nenhum homem poderia subjugar ou apropriar tudo; nem poderia consumir mais do que uma pequena parte.
(...)Assim, no princípio, o trabalho conferiu o direito de propriedade sempre que alguém se dispôs a empregá-lo em bens que eram comuns. (...) É verdade que posteriormente em algumas regiões do mundo, onde o aumento do número de pessoas e dos recursos, propiciado pelo uso do dinheiro, tornou a terra escassa e lhe deu algum valor, as várias comunidades estabeleceram as fronteiras dos seus respectivos territórios e, mediante leis feitas entre si, regularam a propriedade de cada um dos particulares da sua sociedade. Assim, por meio do pacto e do acordo, estabeleceram a propriedade que o trabalho e a indústria iniciaram; e as alianças concluídas entre os vários Estados e reinos, com o abandono expresso ou tácito de todas as pretensões e direitos às terras que estavam na posse dos outros membros da aliança, renunciaram por comum acordo às reivindicações do direito natural comum que originariamente tinham sobre esses países.
(...) Por os homens serem, como já se disse, por natureza livres, iguais e independentes, ninguém pode ser arrancado desta condição e sujeito ao poder político de outrem, sem o seu próprio consentimento. O único modo por meio do qual alguém se priva da sua liberdade natural e assume os vínculos da sociedade civil consiste no acordo com os outros homens para se juntarem e unirem numa só comunidade, para que possam viver uns com os outros de forma confortável, segura e pacífica no usufruto tranquilo das suas propriedades, e obter uma maior proteção contra os que não são membros da sua comunidade.
(...) É preciso assumir, portanto, que quem abandona o estado de natureza e se une a uma comunidade cede todo o poder que é necessário para a prossecução dos fins que o levaram à sua adesão à maioria da comunidade, a menos que seja expressamente determinado um número superior à maioria simples. (...) Assim, aquilo que inicia e realmente constitui todas as sociedades políticas não é outra coisa senão o consentimento de um qualquer número de homens livres capaz de formar uma maioria de se unir e se integrar numa sociedade. Isto, e somente isto, principiou ou poderia principiar todos os governos legítimos do mundo.
(Locke, J., Dois Tratados do Governo Civil, trad. Miguel Morgado, Lisboa: Edições 70, 2015.)
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