quarta-feira, 31 de março de 2021

A visão mitológica do mundo

 Olá, Sofia! Temos muita coisa pela frente, por isso é bom começarmos logo.

Por filosofia entendemos uma forma completamente nova de pensar, surgida na Grécia por volta de 600a.C. Antes disso, todas as perguntas dos homens haviam sido respondidas pelas diferentes religiões. Essas explicações religiosas tinham sido passadas de geração para geração através dos mitos

Um mito é  a história de deuses e  tempo por objetivo explicar por que a vida é assim como é. 

Ao longo dos milênios, espalhou-se por todo o mundo uma diversificada gama de explicações mitológicas para as questões filosóficas. Os filósofos gregos tentaram provar que tais explicações não eram confiáveis.

A fim de entendermos o pensamento dos primeiros filósofos, precisamos entender primeiro o que significa ter uma visão mitológica do mundo. Vamos tomar por exemplo algumas concepções mitológicas aqui mesmo do Norte da Europa. Não há necessidade de irmos muito longe para mostrar o que queremos.

Na certa você já ouviu falar de Thor e de seu martelo. Antes de o cristianismo chegar a Noruega, acreditava-se aqui no Norte que Thor cruzava os céus numa carruagem puxada por dois bodes. E quando ele agitava seu martelo, produziam-se raios e trovões. A palavra "trovão" - Thor-den em norueguês - significa originariamente "o rugido de Thor". Em sueco, a palavra para trovão é aska, na verdade as-aka - que significa a jornada dos deuses no céu.

Quando troveja e relampeja, geralmente também chove. E a chuva era vital para os camponeses da era dos vikings. Assim, Thor era adorado como o deus da fertilidade.

A resposta mitológica a questão de saber por que chovia era, portanto, a de que Thor agitava seu martelo e, quando caía a chuva, as sementes germinavam e as plantas cresciam nos campos.

Não se entendia por que as plantas cresciam nos campos e como davam frutos. Mas os camponeses sabiam que isto tinha alguma coisa a ver com a chuva. Além disso, todos acreditavam que a chuva tinha algo a ver com Thor. E isto fazia dele um dos deuses mais importantes do Norte da Europa.

(...) Mas não se tratava apenas de explicações.
As pessoas não podiam simplesmente ficar sentadas de braços cruzados, esperando pela intervenção dos deuses, quando catástrofes tais como secas e epidemias as ameaçavam. As pessoas precisavam elas mesmas participar dessa luta contra o mal. E isto elas faziam através de toda a sorte de cerimônias ou rituais religiosos.

O principal ritual religioso na Antiguidade nórdica era o sacrifício. Oferecer alguma coisa em sacrifício a um deus significava aumentar o seu poder. As pessoas precisavam, por exemplo, oferecer sacrifícios aos deuses, a fim de que eles se fortalecessem o suficiente para vencer as forças do mal. Isto podia ser feito, por exemplo, sacrificando-se um animal. Presume-se que a Thor eram sacrificados sobretudo bodes. Para Odin sacrificavam-se às vezes também pessoas.

(...) Bem, acho que podemos parar par aqui com a história do mito, Sofia. Mas a que será que este mito em particular realmente quer nos dizer? É claro que ele não foi escrito em versos apenas para divertir. Também este mito quer explicar alguma coisa. E aqui vai uma interpretação possível:
Quando a seca assolava uma região, as pessoas precisavam de uma explicação para a total ausência de chuva. Não seria porque os trolls tinham roubado a martelo de Thor?

Podemos imaginar também que este mito tenta explicar a alternância das estações do ano: no inverno a natureza está morta, porque a martelo de Thor está em Jotunheim. Mas na primavera Thor consegue reavê-lo. E, assim, os mitos tentam explicar às pessoas algo que elas não conseguem entender.

Mas as pessoas não se contentavam apenas com explicações como esta que acabamos de ouvir. Elas também tentavam participar desses acontecimentos tão importantes para suas vidas. E o faziam através de diferentes rituais religiosos, que guardavam uma relação com os mitos. Assim, podemos imaginar que no caso da seca, ou de uma colheita ruim, as pessoas encenassem um drama que recontasse a história do mito. Talvez um homem da aldeia se fantasiasse de noiva usando pedras no lugar dos seios, a fim de reaver a martelo que estava em poder dos trolls. Era esta a forma que as pessoas viam de fazer alguma coisa para atrair chuva e fazer as sementes germinarem nos campos.

Embora não saibamos exatamente como tudo acontecia, uma coisa é certa: há muitos exemplos de outras partes do mundo que nos mostram que as pessoas encenavam um "mito das estações do ano", a fim de acelerar os processos naturais.

O que fizemos foi apenas um breve passeio pelo mundo dos mitos nórdicos. Há inúmeros outros mitos sobre Thor e Odin, Freyeja, Hod e Balder; e sobre muitas, muitas outras divindades. Visões míticas como estas existiam no mundo todo, muito antes de os filósofos começarem a questioná-las. Pois os gregos também tinham a sua visão mitológica do mundo, quando surgiram os primeiros filósofos. Ao longo dos séculos, as historias dos deuses foram sendo passadas de geração em geração. Na Grécia, os deuses eram chamados de Zeus e Apolo, Hera e Atena, Dioniso e Asclenio, Heracles e Hefafstos, apenas para citar alguns nomes.

Por volta de 700 a.c., Homero e Hesíodo registraram por escrito boa parte do tesouro da mitologia grega. Isto levou a uma situação completamente nova. É que, a partir do momento em que mitos foram colocados no papel, já se podia discutir sobre eles.

Os primeiros filósofos gregos criticaram a mitologia descrita por Homero, porque para eles os deuses ali representados tinham muitas semelhanças com os homens. De fato, eles eram exatamente tão egoístas e traiçoeiros como qualquer um de nós. Pela primeira vez na história da humanidade foi dito claramente que os mitos talvez não passassem de frutos da imaginação do homem.

Um exemplo dessa crítica aos mitos pode ser encontrado no Filósofo Xenófanes, nascido por volta de 570 a.c. Para ele, as pessoas teriam criado os deuses à sua própria imagem e semelhança: "Os mortais acreditam que os deuses nascem, falam e se vestem de forma semelhante à sua própria ... Os etíopes imaginam seus deuses pretos e de nariz achatado; os tracianos, ao contrário, os veem ruivos e de olhos azuis ... Se as vacas, cavalos ou leões tivessem mãos e com elas pudessem pintar e produzir obras como os homens, eles criariam e representariam suas divindades à sua imagem e semelhança: os deuses dos cavalos teriam feições equinas, os das vacas se pareceriam com elas, e assim por diante".

Nesta época, os gregos fundaram muitas cidades-Estados na Grécia e em suas colônias no Sul da Itália e na Ásia Menor. Nelas, os escravos faziam todo o serviço braçal e os cidadãos livres possam dedicar-se exclusivamente à política e à cultura. Sob tais condições de vida, o pensamento humano deu um salto: sem depender de nada nem de ninguém, cada indivíduo podia agora opinar sobre como a sociedade devia ser organizada. Desse modo, o indivíduo podia formular suas questões filosóficas sem ter que para isto recorrer à tradição dos mitos.

Dizemos que naquela época ocorreu a evolução de uma forma de pensar atrelada ao mito para um pensamento construído sobre a experiência e a razão. O objetivo dos primeiros filósofos gregos era o de encontrar explicações naturais para os processos da natureza...

Sofia resolveu andar um pouco pelo jardim. Ela tentava esquecer tudo o que tinha aprendido na escola, principalmente o que tinha lido nos livros de ciência.

Se ela tivesse crescido naquele jardim, sem saber qualquer coisa a respeito da natureza, o que seria a primavera para ela?

Será que ela inventaria uma explicação para o fato de um belo dia de repente começar a chover? Será que ela daria asas à imaginação para explicar por que a neve derrete e o sol se levanta no céu?

Sim, ela estava certa de que o faria. E imediatamente começou a inventar uma história:

o inverno agarrou a terra com suas mãos geladas, porque o malvado Muriat mantinha a bela princesa Sikita presa num frio calabouço. Certa manhã, porém, o valente príncipe Bravato veio e conseguiu libertá-la. Sikita ficou tão feliz que começou a dançar sobre os campos e prados, cantando uma canção que ela tinha composto durante seu cativeiro no frio calabouço. E a terra e as árvores ficaram tão enternecidas que toda a neve se desfez em lágrimas. Foi então que o Sol apareceu no céu e secou todas as lágrimas. Os passarinhos passaram a imitar a canção de Sikita, e, quando a bela princesa soltou seus cabelos loiros, algumas mechas douradas caíram no chão e se transformaram em lírios ...

Sofia achou que tinha inventado uma bela história. Se ela não conhecesse nenhuma outra explicação para a alternância das estações do ano, certamente teria acreditado na sua história.

Ela entendeu, então, que as pessoas sempre tiveram a necessidade de explicar os processos da natureza. Que elas talvez nem pudessem viver sem tais explicações: E por causa disso inventaram os mitos, pois naquela época ainda não existia a ciência.

GAARDER, Jostein, O Mundo de Sofia:Romance da história da filosofia, Tradução: João Azenha Jr,  18ª reimpressão,   Capítulo: Terceiro, São Paulo: Cia das Letras, 1995


quinta-feira, 25 de março de 2021

Mulheres na Filosofia?

 A história das mulheres na filosofia é marcada por numerosos desequilíbrios, dos quais o mais evidente - sua longa, muito longa ausência - tende a esconder os outros. Sabemos, é claro, que desde a Antiguidade e até o século XX, a sociedade patriarcal europeia reservou o estudo das letras a seus rebentos machos, de modo que principalmente a literatura e a filosofia acabaram sendo atividades reservadas aos homens. O monopólio da educação, da escrita, do debate, da publicação, manteve a maioria das mulheres longe dos conceitos filosóficos e daquilo que eles trazem de alegrias especulativas, de esforços literários e de lampejos libertadores. 

Mas não todas. Se voltarmos na história, encontraremos vestígios de numerosas mulheres, cujos pensamentos, e às vezes os escritos, marcaram sua época. São elas: na Grécia, Fíntis, Temista e Hipátia, famosa neoplatônica falecida em 415; no mundo cristão, Hildegarda de Bingen (1098-1179), Catarina de de Siena (1347-1380) e ainda Cristina de Pisano (1364-1430); no mundo islâmico, Fatima bint al-Muthanna, também conhecida como Fátima de Córdova (século XII). Se, com frequência, essas exceções não encontraram espaço na história da filosofia, é em parte porque a Grande Narrativa, que entoa invariavelmente os nomes de Sócrates, Platão, Aristóteles, Averróis, Tomás de Aquino, Descartes, Leibniz, Rousseau, Kant, e assim por diante, continua a ser uma história de homens e para sua própria glória. 

Assim, devemos admitir que um dos principais instrumentos do machismo contemporâneo não está apoiado apenas em milênios de dominação e de falsas evidências, promulgadas por instituições, práticas, construções teóricas e jurídicas, que colocavam as mulheres em situação de inferioridade com relação aos homens. Ele consiste também em inculcar a ideia - amplamente difundida pelas próprias mulheres e feministas - de um passado sem partilha, uniformemente masculino, como se a história da filosofia, a história intelectual em geral, talvez até mesmo a integridade da história europeia, pudesse ter se desenrolado durante dois ou três milênios simplesmente sem a presença das mulheres. 

Assim, lutar contra o desaparecimento das fontes, que testemunham que houve mulheres para superar a dominação masculina e homens para denunciá-las, constitui uma etapa  inevitável para repensar o todo da narrativa que produzimos sobre as relações dessas mulheres ao longo da história. Ao reequilibrar a maneira de contar a história da filosofia, não se está negando a realidade da dominação, nem tapando o sol com a peneira. Trata-se de superar o silêncio com o qual uma história exclusivamente masculina quer recobrir as importantes contribuições trazidas ao pensamento pelas mulheres e pelas questões levantadas por elas. 

(...) Para que isso seja possível, é indispensável tornar as fontes acessíveis, a fim de que todas e todos nós possamos consultá-las e fazer com que sejam consultadas. (Rovere, Maxime)

Arqueofeminismo: mulheres filósofas e filósofos feministas século XVII-XVIII, org. Maxime Rovere, São Paulo:n-1 edições, 2019.  


 

quarta-feira, 24 de março de 2021

O que é Filosofia? (O mundo de Sofia - Romance da história da filosofia - Jostein Gaarder)

Querida Sofia, 

Muitas pessoas têm hobbies diferentes. Algumas colecionam moedas e selos antigos, outras gostam de trabalhos manuais, outras ainda dedicam quase todo o seu tempo livre a uma determinada modalidade de esporte.

Também há os que gostam de ler. Mas os tipos de leitura também são muito diferentes. Alguns lêem apenas jornais ou gibis, outros gostam de romances, outros ainda preferem livros sobre temas diversos como astronomia, a vida dos animais ou as novas descobertas da tecnologia.

Se me interesso por cavalos ou pedras preciosas, não posso querer que todos os outros tenham o mesmo interesse. Se fico grudado na televisão assistindo a todas as transmissões de esporte, tenho que aceitar que outras pessoas achem o esporte uma chatice.

Mas será que existe alguma coisa que interessa a todos? Será que existe alguma coisa que concerne a todos, não importando quem são ou onde se encontram? Sim, querida Sofia, existem questões que deveriam interessar a todas as pessoas. E é sobre tais questões que trata este curso.

Qual é a coisa mais importante da vida? Se fazemos esta pergunta a uma pessoa de um país assolado pela fome, a resposta será: a comida. Se fazemos a mesma pergunta a quem está morrendo de frio, então a resposta será: o calor. E quando perguntamos a alguém que se sente sozinho e isolado, então certamente a resposta será: a companhia de outras pessoas.

Mas, uma vez satisfeitas todas essas necessidades, será que ainda resta alguma coisa de que todo mundo precise? Os filósofos acham que sim. Eles acham que o ser humano não vive apenas de pão. É claro que todo mundo precisa comer. E precisa também de amor e de cuidado. Mas ainda há uma coisa de que todos nós precisamos. Nós temos a necessidade de descobrir quem somos e por que vivemos.

Portanto, interessar-se em saber por que vivemos não é um interesse "casual" como colecionar selos, por exemplo. Quem se interessa por tais questões toca um problema que vem sendo discutido pelo homem praticamente desde quando passamos a habitar este planeta. A questão de saber como surgiu o universo, a Terra e a vida por aqui é uma questão maior e mais importante do que saber quem ganhou mais medalhas de ouro nos últimos Jogos Olímpicos.

O melhor meio de se aproximar da filosofia é fazer perguntas filosóficas:

Como o mundo foi criado? Será que existe uma vontade ou um sentido por detrás do que ocorre? Há vida depois da morte? Como podemos responder a estas perguntas? E, principalmente: como devemos viver?

Essas perguntas têm sido feitas pelas pessoas de todas as épocas. Não conhecemos nenhuma cultura que não se tenha perguntado quem é o ser humano e de onde veio o mundo.

Basicamente, não há muitas perguntas filosóficas para se fazer. Já fizemos algumas das mais importantes. Mas a história nos mostra diferentes respostas para cada uma dessas perguntas que estamos fazendo.

É mais fácil, portanto, fazer perguntas filosóficas do que respondê-las.

Da mesma forma, hoje em dia cada um de nós deve encontrar a sua resposta para estas perguntas. Não dá para procurar numa enciclopédia se existe um Deus, ou se há vida após a morte. A enciclopédia também não nos diz como devemos viver. Mas a leitura do que outras pessoas pensaram pode nos ser útil quando precisamos construir nossa própria imagem do mundo e da vida.

A busca dos filósofos pela verdade pode ser comparada com uma história policial. Alguns acham que Andersen é o criminoso; outros acham que é Nielsen ou Jepsen. Um crime na vida real pode chegar a ser desvendado pela polícia um dia. Mas também podemos imaginar que a polícia nunca consiga solucionar determinado caso, embora a solução para ele esteja em algum lugar. 

Mesmo que seja difícil responder a uma pergunta, isto não significa que ela não tenha uma - e só uma - reposta certa. Ou há algum tipo de vida depois da morte, ou não. 

Muitos dos antigos enigmas foram resolvidos pela ciência ao longo dos anos. Antigamente, um grande enigma era saber como era o lado escuro da Lua. Não era possível chegar a uma resposta apenas através de discussão; a resposta ficava par a imaginação de cada um. Hoje, porém, sabemos exatamente como é o lado escuro da Lua. Não dá mais para "acreditar" que há um homem morando na Lua, nem que ela é um grande queijo, todo cheio de buracos. 

Um dos antigos filósofos gregos, que viveu há mais de dois mil anos, acreditava que a filosofia era fruto da capacidade do homem de se admirar com as coisas. Ele achava que para o homem a vida é algo tão singular que as perguntas filosóficas surgem como que espontaneamente. É como o que ocorre quando assistimos a um truque de mágica: não conseguimos entender como é possível acontecer aquilo que estamos vendo diante dos nossos olhos. E então, depois de assistirmos à apresentação, nos perguntamos: como é que o mágico conseguiu transformar dois lenços de seda brancos num coelhinho vivo?

Para muitas pessoas, o mundo é tão incompreensível quanto o coelhinho que um mágico tira de uma cartola que, há poucos instantes, estava vazia. 

No caso do coelhinho, sabemos perfeitamente que o mágico nos iludiu. Quando falamos sobre o mundo, as coisas são um pouco diferentes. Sabemos que o mundo não é mentira ou ilusão, pois estamos vivendo nele, somos parte dele. No fundo, somos o coelhinho branco que é tirado da cartola. A única diferença entre nós e o coelhinho branco é que o coelhinho não sabe que está participando de um truque de mágica. Conosco é diferente. Sabemos que estamos fazendo parte de algo misterioso e gostaríamos de poder explicar como tudo funciona. 

PS. Quanto ao coelhinho branco, talvez seja melhor compará-lo com todo o universo. Nós, que vivemos aqui, somos os bichinhos microscópicos que vivem na base dos pelos do coelho. Mas os filósofos tentam subir da base para a ponta dos finos pelos, a fim de poder olhar dentro dos olhos do grande mágico. 

GAARDER, JOSTEIN, O mundo de Sofia: romance da história da filosofia, tradução João Azenha Jr., São Paulo: Companhia das Letras, 1995. 



terça-feira, 23 de março de 2021

Nós, Mulheres (Rosa Monteiro)

 (trechos selecionados da Introdução)

Há alguns séculos, nós, seres humanos, começamos a nos perguntar por que as sociedades diferenciavam de tal modo homens e mulheres quanto a hierarquias e funções. Alguma fêmea especialmente intrépida já se fizera essas perguntas antes, a exemplo da francesa Christine de Pisan, que escreveu em 1405 La Cité des dames [A cidade das damas]; mas foi preciso que viesse o positivismo e a morte definitiva dos deuses para que os habitantes do mundo ocidental passassem a se perguntar massivamente o porquê das cosias, curiosidade intelectual que inclui, forçosamente, e apesar da resistência de muitos e muitas, os numerosos questionamentos relativos à condição da mulher: diferente, distante, subjugada.

E ainda não há, na verdade, resposta clara para essas perguntas: como se estabeleceram as hierarquias, quando isso aconteceu, se sempre foi assim. Cunharam-se teorias, nenhuma delas suficientemente demonstrada, que falam de uma primeira etapa de matriarcado na humanidade. De grandes deusas onipotentes, como a Deusa Branca mediterrânea descrita por Robert Graves. Talvez não fosse uma etapa do matriarcado, mas simplesmente de igualdade social entre os sexos, com domínios específicos para umas e outros. A mulher paria, e essa impressionante capacidade deve tê-la tornado muito poderosa. Expressam esse poder as vênus da fertilidade vindas da pré-história (como a de Willendorf: gorda, roliça, deliciosa), bem como as múltiplas figuras femininas posteriores, as fortes deusas de pedra do Neolítico. 

Engels sustentava que a subordinação da mulher se originou ao mesmo tempo que a propriedade privada e a família, quando os seres humanos deixaram de ser nômades e se assentaram em povoações agricultoras; o homem, diz Engels, precisava assegurar filhos próprios a quem transmitir suas posses, daí que passasse a controlar a mulher. Fico pensando que talvez o dom procriador das fêmeas assustasse demais os varões, sobretudo quando eles viraram camponeses. Antes, na vida errante e caçadora, o valor de ambos os sexos estava claramente estabelecido: elas pariam, amamentavam, criavam; eles caçavam, defendiam. Funções de valor intercambiável, fundamentais. Mas depois, na vida agrícola, o que os homens faziam de específico? As mulheres podiam cuidar da terra como eles ou, quem sabe, de um ponto de vista mágico, ainda melhor, porque a fertilidade era seu reino, seu domínio. Sim, é razoável pensar que eles deviam vê-las como demasiado poderosas. Talvez o impulso masculino de controle tenha nascido desse medo (e da vantagem de eles serem mais fortes fisicamente).

Esse receio do poder das mulheres é perceptível já nos mitos inaugurais de nossa cultura, nos relatos da criação do mundo, que, por um lado, se esforçam para definir o papel subsidiário das fêmeas, mas ao mesmo tempo nos conferem uma capacidade de causar prejuízo muito acima de nossa posição secundária. Eva leva Adão e toda a humanidade à perdição por se deixar tentar pela serpente, o que é feito também por Pandora, a primeira mulher, segundo a mitologia grega, criada por Zeus para castigar os homens: o deus dá a Pandora uma ânfora cheia de desgraças, jarra que a mulher destapa movida por sua irrefreável curiosidade feminina, libertando assim todos os males. Esses dois relatos primordiais apresentam a fêmea como um ser fraco, avoado e sem juízo. Por outro lado, a curiosidade é um ingrediente básico da inteligência, e é a mulher que tem, nesses mitos, a ousadia de se perguntar o que há além, a vontade de descobrir o que está oculto. Além disso, os males que Eva e Pandora trazem ao mundo são a mortalidade, a doença, o tempo, condições que formam a própria substância do humano, de modo que, na verdade, a lenda lhes atribui um papel - agridoce mas imenso - enquanto criadoras da humanidade. 

(...) Os historiadores, os enciclopedistas, os acadêmicos, os guardiães da cultura oficial e da memória pública sempre foram homens, e os atos e as obras das mulheres raramente passaram para os anais. Porém, hoje essa amnésia sexista por fim está mudando: a crescente presença feminina nos níveis acadêmicos e eruditos começa a normalizar a situação, e abriu-se todo um campo de novas pesquisas, feitas majoritariamente por mulheres, que tentam resgatar nossas antepassadas da bruma. 

Antepassadas capazes de levar a cabo proezas anônimas tão imensas como a invenção, na província chinesa de Hunan, de uma linguagem secreta. Ou melhor, de uma caligrafia só para mulheres, uma forma de escrita críptica chamada nushu, que conta com  mil caracteres e foi criada há, no mínimo, mil anos (alguns especialistas chegam a falar em 6 mil), ainda que hoje em dia só meia dúzia de anciãs octogenárias a conheçam. 

(...) Corajosas e anônimas, sim, assim foram milhões de mulheres do passado. Segundo as últimas teorias acadêmicas, talvez os textos anônimos da história da literatura tenham justamente saído, em sua maioria, de penas femininas. Em outros casos, as mulheres escreviam obras que depois seus cônjuges (ou seus homens: pais, irmãos, filhos) publicavam, como é o caso da espanhola María Martínez Sierra (1874-1974), socialista e feminista, deputada da Segunda República e importante dramaturga, cujos trabalhos foram publicados, no entanto, sob o nome de seu marido. 

(...) Ou seja, metade da humanidade, a parte feminina, viveu durante milênios uma existência frequentemente clandestina (como foram clandestinos, muitas vezes, esses amantes jovens, ou como o era o nushu, a linguagem secreta), e em grande medida esquecida, mas sempre acima dos preconceitos e dos estereótipos. Com este livro, só almejo, enfim, dar uma breve olhada nessas trevas. Porque há uma história que não está na história e que só pode ser resgatada aguçando-se o ouvido e escutando os sussurros das mulheres. 

MONTERO, Rosa, Nós, mulheres: grandes vidas femininas, tradução Josely Vianna Baptista, São Paulo: Todavia, 2020.



A arte de viver - Epicteto

 As coisas em si não nos ferem ou nos criam obstáculos. Nem as outras pessoas. A questão está na forma como as encaramos. São nossas atitudes e reações que nos criam problemas. 

Sendo assim, até a morte deixa de ser tão importante. É a nossa noção da morte, a ideia que fazemos dela que é terrível, que nos aterroriza. Existem muitas maneiras de pensar na morte. Examine suas noções a respeito da morte - e também sobre tudo o mais. Essas noções são de fato verdadeiras? Fazem algum bem a você? Não tema a morte ou a dor, tema o medo da morte ou da dor. 

Não podemos escolher as circunstâncias externas de nossa vida, mas sempre podemos escolher a maneira como reagimos a elas. (p.30)

 

Existem tempo e lugar certos para diversão e distração, mas nunca permita que elas se sobreponham aos seus verdadeiros objetivos pessoais. Se você estivesse viajando e o navio ancorasse em uma enseada, você poderia ir a terra em busca de água e no caminho parar para pegar uma concha ou colher uma planta. Mas precisaria ter cuidado e ouvir o chamado do capitão, manter-se atento ao navio. Distrair-se com bobagens é a coisa mais fácil do mundo.  Se o capitão chamasse, você teria de estar pronto para deixar de lado essas distrações e voltar correndo, talvez até sem tempo de olhar para trás.

Se você não for jovem, não se afaste muito do navio ou poderá não ter tempo de chegar lá quando o chamarem. (p.34)

 

EPICTETO, A arte de viver, trad. Maria Luiza Newlands da Silveira, Rio de Janeiro: Sextante, 2018.



 

Igualdade entre homens e mulheres (1622) - Marie de Gournay

  “A maioria dos que defendem a causa das mulheres, lutando contra essa orgulhosa preferência que os homens se atribuem, lhes dá o troco com...