(trechos selecionados da Introdução)
Há alguns séculos, nós, seres humanos, começamos a nos perguntar por que as sociedades diferenciavam de tal modo homens e mulheres quanto a hierarquias e funções. Alguma fêmea especialmente intrépida já se fizera essas perguntas antes, a exemplo da francesa Christine de Pisan, que escreveu em 1405 La Cité des dames [A cidade das damas]; mas foi preciso que viesse o positivismo e a morte definitiva dos deuses para que os habitantes do mundo ocidental passassem a se perguntar massivamente o porquê das cosias, curiosidade intelectual que inclui, forçosamente, e apesar da resistência de muitos e muitas, os numerosos questionamentos relativos à condição da mulher: diferente, distante, subjugada.
E ainda não há, na verdade, resposta clara para essas perguntas: como se estabeleceram as hierarquias, quando isso aconteceu, se sempre foi assim. Cunharam-se teorias, nenhuma delas suficientemente demonstrada, que falam de uma primeira etapa de matriarcado na humanidade. De grandes deusas onipotentes, como a Deusa Branca mediterrânea descrita por Robert Graves. Talvez não fosse uma etapa do matriarcado, mas simplesmente de igualdade social entre os sexos, com domínios específicos para umas e outros. A mulher paria, e essa impressionante capacidade deve tê-la tornado muito poderosa. Expressam esse poder as vênus da fertilidade vindas da pré-história (como a de Willendorf: gorda, roliça, deliciosa), bem como as múltiplas figuras femininas posteriores, as fortes deusas de pedra do Neolítico.
Engels sustentava que a subordinação da mulher se originou ao mesmo tempo que a propriedade privada e a família, quando os seres humanos deixaram de ser nômades e se assentaram em povoações agricultoras; o homem, diz Engels, precisava assegurar filhos próprios a quem transmitir suas posses, daí que passasse a controlar a mulher. Fico pensando que talvez o dom procriador das fêmeas assustasse demais os varões, sobretudo quando eles viraram camponeses. Antes, na vida errante e caçadora, o valor de ambos os sexos estava claramente estabelecido: elas pariam, amamentavam, criavam; eles caçavam, defendiam. Funções de valor intercambiável, fundamentais. Mas depois, na vida agrícola, o que os homens faziam de específico? As mulheres podiam cuidar da terra como eles ou, quem sabe, de um ponto de vista mágico, ainda melhor, porque a fertilidade era seu reino, seu domínio. Sim, é razoável pensar que eles deviam vê-las como demasiado poderosas. Talvez o impulso masculino de controle tenha nascido desse medo (e da vantagem de eles serem mais fortes fisicamente).
Esse receio do poder das mulheres é perceptível já nos mitos inaugurais de nossa cultura, nos relatos da criação do mundo, que, por um lado, se esforçam para definir o papel subsidiário das fêmeas, mas ao mesmo tempo nos conferem uma capacidade de causar prejuízo muito acima de nossa posição secundária. Eva leva Adão e toda a humanidade à perdição por se deixar tentar pela serpente, o que é feito também por Pandora, a primeira mulher, segundo a mitologia grega, criada por Zeus para castigar os homens: o deus dá a Pandora uma ânfora cheia de desgraças, jarra que a mulher destapa movida por sua irrefreável curiosidade feminina, libertando assim todos os males. Esses dois relatos primordiais apresentam a fêmea como um ser fraco, avoado e sem juízo. Por outro lado, a curiosidade é um ingrediente básico da inteligência, e é a mulher que tem, nesses mitos, a ousadia de se perguntar o que há além, a vontade de descobrir o que está oculto. Além disso, os males que Eva e Pandora trazem ao mundo são a mortalidade, a doença, o tempo, condições que formam a própria substância do humano, de modo que, na verdade, a lenda lhes atribui um papel - agridoce mas imenso - enquanto criadoras da humanidade.
(...) Os historiadores, os enciclopedistas, os acadêmicos, os guardiães da cultura oficial e da memória pública sempre foram homens, e os atos e as obras das mulheres raramente passaram para os anais. Porém, hoje essa amnésia sexista por fim está mudando: a crescente presença feminina nos níveis acadêmicos e eruditos começa a normalizar a situação, e abriu-se todo um campo de novas pesquisas, feitas majoritariamente por mulheres, que tentam resgatar nossas antepassadas da bruma.
Antepassadas capazes de levar a cabo proezas anônimas tão imensas como a invenção, na província chinesa de Hunan, de uma linguagem secreta. Ou melhor, de uma caligrafia só para mulheres, uma forma de escrita críptica chamada nushu, que conta com mil caracteres e foi criada há, no mínimo, mil anos (alguns especialistas chegam a falar em 6 mil), ainda que hoje em dia só meia dúzia de anciãs octogenárias a conheçam.
(...) Corajosas e anônimas, sim, assim foram milhões de mulheres do passado. Segundo as últimas teorias acadêmicas, talvez os textos anônimos da história da literatura tenham justamente saído, em sua maioria, de penas femininas. Em outros casos, as mulheres escreviam obras que depois seus cônjuges (ou seus homens: pais, irmãos, filhos) publicavam, como é o caso da espanhola María Martínez Sierra (1874-1974), socialista e feminista, deputada da Segunda República e importante dramaturga, cujos trabalhos foram publicados, no entanto, sob o nome de seu marido.
(...) Ou seja, metade da humanidade, a parte feminina, viveu durante milênios uma existência frequentemente clandestina (como foram clandestinos, muitas vezes, esses amantes jovens, ou como o era o nushu, a linguagem secreta), e em grande medida esquecida, mas sempre acima dos preconceitos e dos estereótipos. Com este livro, só almejo, enfim, dar uma breve olhada nessas trevas. Porque há uma história que não está na história e que só pode ser resgatada aguçando-se o ouvido e escutando os sussurros das mulheres.
MONTERO, Rosa, Nós, mulheres: grandes vidas femininas, tradução Josely Vianna Baptista, São Paulo: Todavia, 2020.