Trechos selecionados de texto publicado no Portal Geledés
O Brasil, como nação, se proclama a única democracia racial do mundo, e grande parte do mundo a vê e respeita como tal.
Mas, um exame de seu desenvolvimento histórico revela a verdadeira natureza de sua estrutura social, cultural e política: é essencialmente racista e vitalmente ameaçadora para os negros.
Através da era da escravidão, de 1530 a 1888, o Brasil levou a cabo uma política de liquidação sistemática dos africanos.
Desde a abolição legal da escravidão, em 1888, até agora, essa política tem sido levada avante por meio de mecanismos bem definidos de opressão, mantendo a supremacia branca isenta de ameaças neste país.
Durante a escravidão, a opressão aos africanos era tão flagrante que mereceu pouca atenção aqui; eram considerados sub-umanos e forçados a viver na imundície, miséria e degradação de seu status social. Isso significa negligência médica e higiênica, desnutrição, sujeição e abuso sexual.
Essa opressão física e econômica resultou na degradação mental e cultural do escravo, como todos estamos familiarizados. Depois da abolição, os senhores, principalmente os possuidores das plantações de café nos estados do Sul, recusaram-se a empregar os negros livres como trabalhadores, dando preferência aos imigrantes europeus brancos.
Assim negavam a seus antigos escravos os elementos mais básicos de subsistência, acusando-os de indolência e de não terem interesse em levar uma vida produtiva.
Eles ignoravam um fator básico: eles próprios haviam transformado o escravo em “pouco mais que uma besta e pouco menos que uma criança”, através da exploração infame, transformando os resultados de sua exploração em argumento contrário a qualquer possibilidade do escravo ser um homem livre.
Desde os tempos da escravidão, o instrumento mais valioso de genocídio físico e espiritual da raça Negra tem sido a estrutura do poder político de branqueamento da população brasileira.
Os testemunhos da orientação, predominantemente racista, são muitos e variados.
Atestam a atitude prevalecente de que a população brasileira era feia e geneticamente inferior por causa da presença do sangue negro, precisando por essa razão “se fortalecer através da junção com os valores superiores da raça européia”.
Essa atitude era endossada pela teoria supostamente científica e sociológica, que fornecia suporte intelectual vital à política da classe dominante.
“O meu argumento é que a futura vitória na luta pela vida entre nós pertencerá aos brancos”. O escritor José Veríssimo anotou: “Como nos asseguram os etnógrafos, e como pode ser confirmado ao primeiro olhar, a mistura de raças está facilitando o prevalecimento da raça superior aqui.
Mais cedo ou mais tarde, irá eliminar a raça negra.
Aqui, isto, obviamente já está acontecendo”.
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Neste pretensioso conceito de “democracia racial”, apenas um dos elementos raciais tem qualquer direito ou poder: o branco.
Ele controla os meios de disseminação da informação, os conceitos educacionais, as definições e valores.
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O papel do escravo negro foi crucial para os começos da história e economia política em um país fundado, como Brasil, sobre o imperialismo parasitário
Sem a escravidão, a estrutura econômica não poderia ter existido.
O escravo construiu as funções econômicas da nova sociedade, curvando e quebrando sua espinha; seu trabalho foi a espinha dorsal da economia. Alimentava e reunia a riqueza física do país com seu sangue e suor, apenas para ver os lucros de seu trabalho apropriados pela força da aristocracia branca. Nas plantações de açúcar e café, nas minas, nas cidades, o africano era os pés da classe branca dominante, que não se degradava a si próprio com o trabalho. As ocupações primárias da classe branca dominante eram a indolência, o culto da ignorância e do preconceito, e a mais debochada luxúria.
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O Brasil herdou a estrutura de família patriarcal de Portugal; e o preço dessa herança foi pago pela mulher negra, e não só durante a escravidão. Mesmo hoje, a mulher negra, por causa de sua pobreza e falta de status social, é presa fácil e vulnerável da agressão do homem branco. Fato este que foi corajosamente denunciado no manifesto das mulheres negras brasileiras, unidas em um congresso nacional na Associação Brasileira de Imprensa, Rio de Janeiro, 1975.
Esta realidade social é diametralmente oposta ao mito prevalente que promove o desenvolvimento social do Brasil como um processo fácil de integração. Os homens portugueses, de acordo com este mito, não tinham preconceito de raça, ao contrário, sua falta de preconceito lhes permitiu manter uma interação sexual sadia com a mulher negra. Entretanto, um velho dito deste país, tão popular hoje como há um século atrás, desmente este mito, denunciando-o como uma falsa concepção estabelecida pela classe dominante.
O crime sexual da violência, cometido contra a mulher negra pelo macho branco, foi perpetuado através das gerações pelos seus próprios filhos mulatos, que herdaram o precário prestígio de seus pais e continuaram a explorar a mulher negra. Em uma tentativa de aliviar sua própria culpa nesta exploração sexual, a classe dirigente proclamou o mulato como a chave da solução do problema racial: o começo da liquidação da raça negra e o branqueamento da população brasileira. Mas, apesar de qualquer aparente vantagem de status social, a posição do mulato é na realidade equivalente à do negro: o mulato sofre o mesmo desprezo, discriminação e preconceito na sociedade branca.
* Trecho da tese apresentada por Abdias do Nascimento no II Festival de Artes e Culturas Negras e Africanas (Festac), em 1977.
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