quarta-feira, 28 de outubro de 2020

Eu, empregada doméstica. A senzala moderna é o quartinho da empregada - Preta Rara

(Trechos selecionados)

Comecei a trabalhar em casa de família já não querendo estar naquele lugar, pois a vida inteira percebi como a minha mãe chegava em casa, cansada e às vezes triste. Eu sabia que ela não compartilhava conosco seu dia de trabalho, até porque isso causaria uma tristeza coletiva lá em casa. 

Desde muito nova eu já acompanhava a minha mãe nas faxinas, e querendo que ela acabasse rápido, ia ajudando nos serviços. 

Lembro qeu o único lugar que eu podia sentar era na mesa da cozinha ou na área de serviço. Porém, como sempre fui mega curiosa, questionava a minha mãe dizendo o por que a gente não comia na sala, por que não podia usar o banheiro deles. Minha mãe só falava para eu parar de ser enxerida e ficar quieta. 

Nasci e me criei em Santos, cidade do litoral de São Paulo, e assim que acabei o ensino médio fui atrás de emprego com registro em carteira. 

Lembro que sonhava ser secretária, vendedora de loja de roupa, recepcionista ou qualquer função que eu pudesse ir de salto alto combinando com uma bolsa bonita. 

Meus pais se esforçaram ao máximo para pagar um curso profissionalizante, já que eles não teriam condições de pagar uma universidade. Naquela época, por volta de 2002, eu sai do ensino médio sem saber que existia universidade pública, que mesmo com meu estudo defasado eu poderia tentar prestar vestibular. Nenhum professor da escola estadual que me formei falou isso para a classe. 

Sendo assim, agarrei essa oportunidade do curso profissionalizante e fiz na maior seriedade, como se fosse a única oportunidade da minha vida para não ter o destino de lavar banheiro dos outros. Terminei o curso e comecei a entregar meu currículo bem escrito e digno de uma vaga de trabalho excelente. 

Eram dias mega canstivo, de sair com pouca grana e andar o dia inteiro do centro da cidade de Santos até o bairro Gonzaga entregando currículo. Iffo virou uma dura rotina e nenhum telefonema voltava desse esforço todo. Por diversas vezes eu tinha que optar por ir a pé, que dava uma caminhada de uma hora, pegar o valor da passagem e comer algo; ou ir de ônibus e não comer nada. 

Uma vez me convidaram para ir em uma palestra sobre mercado de trabalho na Educafro, que é um cursinho pré-vestibular para afrodescendentes e carentes. Chegando lá o palestrante falou algo que me acertou como um alvo, justamente sobre o momento que eu estava vivendo: "Preto no Brasil não pode enviar currículo com foto, habitamos um país racista, meu povo. Entreguem currículo sem foto aí vão chamar vocês para entrevistas. Façam esse teste."

Eu saí de lá muito arrasada, pensando em quanta besteira aquele cara havia falado. Lembro de tê-lo achado super preconceituoso. 

Mas foi passando os dias, e eu em minha rotina de acordar cedo para entregar currículo, até que resolvi fazer o teste. Na vaga de emprego que pedia uma boa aparência, tirei uma foto e enviei. Quatro dias depois choveu de telefonema marcando pelo menos uma entrevista. Aquilo me deu uma angústia tão grande. Foi ali que eu entendi o peso de ser preta em um país racista. 

Chegando na entrevista as pessoas tomavam um susto ao perceberem qeu eu era preta. Faziam a entrevista, e pediam pra eu aguardar em casa. 

Já cansada de não conseguir nada, uma amiga me falou que a tia dela estava precisando de alguém que fizesse uma limepeza leve três vezes na semana. Essa minha amiga disse que a tia dela limpava a casa todo dia, que queria alguém mais para manter a limpeza, e que não seri aum serviço pesado. Fiquei pensando se ia ou não, até que resolvi ligar e marcar de ir até aà casa da tia dela. 

(...) Na época, desmpregada, querendo comprar minhas coisas e pagar um curso de inglês, fiquei um pouco chateada porque não era o que eu queria, mas acabei aceitando.

(...) Fui trabalhar naquele lugar, qeu na primeira semana o serviço era bem leve mesmo. Na segunda semana já estava arrumando dentro do guarda-roupa, descongelando a geladeira. Na terceira semana já estava passando roupa. 

Quando me dei conta, estava indo todos os dias, fazendo tudo na casa com o salário de quem era pra ir três vezes na semana. E assim aconteceu em todas as casas em que eu trabalhei. Combinávamos as tarefas, o horário pra entrar, o horário pra sair, o dia do pagamento, mas minhas patroas nunca cumpriam. 

(...)Anos depois eu fui trabalhar na casa dos pais de uma dessas patroas e vivi um episódio horrível. Era aquela época em qeu uma tla marca de leite estava contaminada com soda cáustica. O pai da minha ex-patroa pedi para que eu comprasse leite para o café da tarde, e eu desci até a padaria para comprar. 

Na minha casa, pelo baixo salário dos meus pais a gente comprava tudo do mais barato, e já tinha esse hábito, assim fiz. Peguei o leite e fui acabar de preparar o café. Quano esse homem viu a caixa de leite na pia, teve um surto e gritou tnato que eu deixei o saco de pão cair no chão. Ele disse:"Sua neguinha petulante, quem você pensa que é pra comprar essa porcaria pra minha casa? Se no muquifo da sua favela, lá onde você mora, cês tão acostumado tomar esse lixo, leva rpa sua casa. Eu não vou tomar isso."

(...)

Em 2016 eu já estava formada e lecionava no Colégio Exemplo em São Vicente. Estava num momento muito feliz, tinha acabado de lançar meu disco o Audácia, estava na correria louca de conciliar show e minhas aulas. Em um momento de férias, mroando sozinha em frente à praia, comecei analisar tudo o qeu eu estava vivendo e a minha mente automaticamente foi para um momento do passado, que eu fazia questão de esquecer, porém ele ainda era recente na minha cabeça.

Por conta da correria ainda não tinha parado para analisar que já tinh sonhado com o que estava vivendo. Era meu sonho morar em frente à praia, gravar um disco de rap e ser professora de História. Tudo aquilo já era, tinha conseguido. 

Foi então qeu eu lembrei da minha fase de ser empregada doméstica, que na época já se faziam sete anos, que u tinha me livrado daquela situação. 

Como eu já escrevia algumas reflexões com viés político em meu perfil do Facebook, resolvi psotar minha última experiência como doméstica e invenit uma hashtag. Falei para as pessoas que tiveram e tivessem experiências como a minha, escrevessem e me marcassem, assim eu poderia ler também. Reforcei que não esquecessem de colocar#EuEmpregadaDomesetic, pois assim eu conseguiria acompanhar os relatos. Isso aconteceu no dia 19 de julho de 2016.

Lembro que fiz essa postagem, limpei a minha casa e fui para o estúdio ensaiar, pois tinha um show grande pra fazer. Quando cheguei no estúdio já era umas 21h e os caras da minha banda começaram a falar: "Meu, você mexeu num vespeiro. Tá todo mundo falando sobre isso, já tem até matéria em site."

Fiquei sem saber do que eles estavam falando. Foi quando um deles me mostrou o post no Facebook com quase 10 mil likes e mais de 5 mil compatilhamentos. Aquele meu post tinha viralizado no Brasil com menso de 24 horas. 

Os dias seguintes foram uma loucura. Naquela madrugada pós-ensaio eu resolvi criar uma página e postar todos os relatos recebidos. Aconteceu tudo tão rápido que me lembro que passei o restando dos dias das minhas férias lendo todos os e-mail e os relatos postados na página. 

Dois dias depois estava na minha primeira entrevista internacional para a BBC Londres falando sobre minhas experiências como doméstica e como era o serviço no Brasil.

(...) Lembro que fiquei muito feliz e orgulhosa. No final da palestra veio à tona tudo o qeu já tinha passado com a Dona Margarida, que era professora universitária, que certa vez disse que eu tinha que ser feliz no que já estava predestinado pra mim, que era servir. Toda a minha história, assim como as das outras mulheres passaram como um flash em minha mente, e eu desabei em lágrimas. 

(...) Finalizo esse livro dizendo que tudo que aconteceu não foi meritocracia, até porque se fosse por mérito, eu e várias domésticas já tinhamos alcançado voos mais altos e rápidos.Tudo é resultado de muita disposição para chacoalhar as estruturas da família brasileira elitista branca que ama um ranço colonialista racista. 

(...) Estamos na luta por dias melhores, para garantir nossos direitos trabalhistas até sermos respeitadas dentro do nosso local de trabalho. Estamos na luta em busca de uma relação trabalhaista na qual humanizam nossa existência. 

PRETA-RARA, Eu, empregada doméstica. a senzala moderna é o quartinho da empregada, Preta-Rara, Belo Horizonte: Letramento, 2019.

sexta-feira, 23 de outubro de 2020

Ética para meu filho, Fernando Savater

"(...) Se eu não pensar no que faço mais de uma vez, talvez me baste a resposta de que estou agindo assim "porque é costume". Mas por que diabos tenho de fazer sempre o que se costuma fazer (ou o que costumo fazer)? Nem que eu fosse escravo dos que me cercam, por mais que sejam meus amigos, ou do que fiz ontem, anteontem ou no mês passado! Se vivo cercado de gente que tem o costume de discriminar os negros, e se não acho isso certo de jeito algum, por que devo imitá-los? Se me acostumei a pedir dinheiro emprestado e não devolver, mas cada vez tenho mais vergonha de fazê-lo, por que não mudar de comportamento e começar, a partir de agora, a ser mais correto? Por acaso um costume não pode ser pouco conveniente para mim, por mais acostumado que eu esteja? Quando me interrogo pela segunda vez sobre meus caprichos, o resultado é parecido. Muitas vezes tenho vontade de fazer coisas que logo se voltam contra mim, das quais depois me arrependo. Em assuntos sem importância o capricho pode ser aceitável, mas, quando se trata de coisas mais sérias, deixar-me levar por ele, sem refletir sobre se é um capricho conveniente ou inconveniente, pode ser muito pouco aconselhável, até perigoso: o capricho de sempre atravessar os semáforos no vermelho pode ser divertido uma ou duas vezes, mas será que vou conseguir viver muito se continuar a fazê-lo dia após dia?

(...) A palavra "moral" tem a ver, etimologicamente, com os costumes, pois é exatamente isso que significa o termo latino mores e também com as ordens, pois a maioria dos preceitos morais soam como "você deve fazer isso" ou "nem pense em fazer aquilo". No entanto, há ordens e costumes - como já vimos - que podem ser maus, ou seja, imorais, por mais ordenados e "acostumados" que se apresentem. Se quisermos nos aprofundar de verdade na moral, se quisermos aprender seriamente a empregar bem a liberdade que temos (e é justamente nesse aprendizado que consiste a "moral" ou "ética" de estamos falando aqui), é melhor deixarmos de lado ordens, costumes e caprichos. A primeira coisa que é preciso deixar claro é que a ética de um homem livre nada tem a ver com os castigos nem com os prêmios distribuídos pela autoridade, seja ela autoridade humana ou divina - neste caso, tanto faz. Quem não faz mais do que fugir do castigo e buscar a recompensa conferida por outros, segundo normas estabelecidas por eles, não é melhor do que um pobre escravo. (...) Aqui vai um esclarecimento terminológico. Embora eu vá utilizar as palavras "moral" e "ética" como equivalentes, de um ponto de vista técnico (desculpe-me estar mais professoral do que de hábito) elas não têm significado idêntico. "Moral" é o conjunto de comportamentos e normas que você, eu e algumas das pessoas que nos cercam costumamos aceitar com válidos; "ética" é a reflexão sobre por que os consideramos válidos e a comparação com outras "morais" de pessoas diferentes. Mas, enfim, aqui continuarei utilizando as duas palavras indistintamente, sempre como arte de viver. A academia que me perdoe...

Lembre-se de que as palavras "bom" e "mau" não se aplicam apenas a comportamentos morais, nem apenas a pessoas. (...)

Para alguns, ser bom significará ser resignado e paciente, mas outros considerarão boa a pessoa empreendedora, original, que não se acovarda na hora de dizer o que pensa, mesmo que possa incomodar alguém. Em países como a África do Sul, por exemplo alguns considerarão bom o negro que não reclama e se conforma com o aparthaid, ao passo que outros só chamarão assim os que seguem Nelson Mandela. Sabe por que não é fácil dizer quando um ser humano é "bom" e quando não é? Porque não sabemos para que servem os seres humanos. (...)

É possível ser um bom homem (e uma boa mulher, é claro) de muitas maneiras, e as opiniões que julgam os comportamentos geralmente variam conforme as circunstâncias. Por isso, às vezes, dizemos que Fulano ou Sicrana são bons "a seu modo". Admitimos assim que há muitas formas de sê-lo e que a questão depende do âmbito em que cada um se move. Como você vê, não é fácil determinar de fora quem é bom e quem é mau, quem faz o que convém e quem não faz. Seria preciso estudar não apenas todas as circunstâncias de cada caso, mas até as intenções que movem cada um. Pois poderia acontecer que alguém pretendesse fazer alguma coisa má e, por acaso, acabasse obtendo um resultado aparentemente bom. E não chamaríamos "bom" alguém que fizesse algo bom por mero acaso, não é mesmo? Também é verdade o contrário: com a melhor intenção do mundo alguém poderia provocar um desastre e ser considerado um monstro, sem ter culpa. Mas acho que por esse caminho tiraremos pouca coisa a limpo, sinto muito."

SAVATER, Fernando. Ética para meu filho, 2º ed, São Paulo: Planeta, 2012. 

terça-feira, 20 de outubro de 2020

Política para meu filho, Fernando Savater (trechos selecionados)

 O nascimento da pólis foi um acontecimento decisivo para a Filosofia. O fato de ter como centro a ágora (praça pública), espaço onde eram debatidos assuntos de interesse comum, favorecia o desenvolvimento do discurso político. De fato, a pólis se construiu pela autonomia da palavra, não mais a palavra mágica dos mitos, enunciada pelos deuses e, portanto, consensual, comum a todos, mas a palavra humana do conflito, da discussão, da argumentação. Dentro de seus limites como em suas inovações, a filosofia é filha da cidade (pólis).

"(...) os gregos inventaram a pólis, a comunidade cidadã em cujo espaço artificial, antropocêntrico, não governa a necessidade da natureza nem a vontade enigmática dos deuses, mas a liberdade dos homens, isto é, sua capacidade de raciocinar, de discutir, de escolher e de destituir dirigentes, de criar problemas e propor soluções. O nome pelo qual agora conhecemos essa invenção grega, a mais revolucionária, politicamente falando, que já se produziu na história humana, é democracia.

A democracia grega estava submetida ao princípio de isonomia, isto é: as mesmas leis valiam para todos, pobres ou ricos, de bom berço ou filhos de pais humildes, espertos ou bobocas.  Sobretudo, as leis eram inventadas pelos mesmos que tinham de se submeter a elas: era preciso ter cuidado na assembleia para não aprovar leis ruins, pois qualquer um poderia ser sua primeira vítima... Ninguém na cidade estava acima da lei, e a lei (a mesma lei) tinha de ser obedecida por todos. Mas a lei não provinha de nada mais elevado que os homens, não era ordem irrevogável dada pelos deuses ou pelos antepassados míticos; a assembleia dos cidadãos (todos eles políticos, isto é, administradores da sua pólis) era sua origem e, portanto, podia modifica-la ou aboli-la se a maioria achasse conveniente. Os antigos atenienses estavam tão convencidos de que sua obediência se devia apenas às leis e não a pessoas, por mais "especiais" que fossem (não aceitavam especialistas em mandar), que a maioria das magistraturas e de outros cargos públicos da pólis era decidida pr sorteio! Como todos os cidadãos eram iguais, como nenhum deles podia negar-se a cumprir suas obrigações políticas para com a comunidade (todo mundo participava das decisões e podia vir a ocupar cargos de autoridade, mas era obrigatório decidir e mandar, se lhe coubesse), sortear os cargos políticos parecia aos gregos a melhor solução.

Isonomia? A mesma lei para todos? Igualdade política? Já estou ouvindo você protestar. Como podia ser verdadeira essa igualdade, se tinham escravos! De fato, os escravos não participavam da vida política grega. tampouco as mulheres (que, por certo tiveram que esperar nada menos de 26 séculos, até ontem, por assim dizer, para ter plenos direitos políticos - salvo nos países islâmicos, onde continuam esperando). Você tem razão em seu protesto, mas não se esqueça de que, desde aquela longíqua Grécia, passaram-se muitas centenas de anos e muitas crenças foram revistas. Os pioneiros atenienses nunca sustentaram que todos os seres humanos têm direitos políticos iguais: o que eles inventaram e estabeleceram é que todos os cidadãos atenienses tinham direitos políticos iguais. E sabiam que nem todo o mundo era cidadão ateniense: era preciso ser varão, de certa idade, não escravo, nascido na pólis, etc. Mas todos os que reuniam esses requisitos eram politicamente iguais. Garanto-lhe que a mudança de mentalidade já é bastante revolucionária para o que então existia na Pérsia, no Egito, na China ou no México dos astecas. (...) Não pretendo idealizar a organização política ateniense (...) a democracia nasceu entre conflitos e serviu para aumentá-los, em vez de resolvê-los.

Savater, Fernando, Política para meu filho, São Paulo: Planeta, 2012, p.63-65.

 

Igualdade entre homens e mulheres (1622) - Marie de Gournay

  “A maioria dos que defendem a causa das mulheres, lutando contra essa orgulhosa preferência que os homens se atribuem, lhes dá o troco com...