O nascimento da pólis foi um acontecimento decisivo para a Filosofia. O fato de ter como centro a ágora (praça pública), espaço onde eram debatidos assuntos de interesse comum, favorecia o desenvolvimento do discurso político. De fato, a pólis se construiu pela autonomia da palavra, não mais a palavra mágica dos mitos, enunciada pelos deuses e, portanto, consensual, comum a todos, mas a palavra humana do conflito, da discussão, da argumentação. Dentro de seus limites como em suas inovações, a filosofia é filha da cidade (pólis).
"(...) os gregos inventaram a pólis, a comunidade cidadã em cujo espaço artificial, antropocêntrico, não governa a necessidade da natureza nem a vontade enigmática dos deuses, mas a liberdade dos homens, isto é, sua capacidade de raciocinar, de discutir, de escolher e de destituir dirigentes, de criar problemas e propor soluções. O nome pelo qual agora conhecemos essa invenção grega, a mais revolucionária, politicamente falando, que já se produziu na história humana, é democracia.
A democracia grega estava submetida ao princípio de isonomia, isto é: as mesmas leis valiam para todos, pobres ou ricos, de bom berço ou filhos de pais humildes, espertos ou bobocas. Sobretudo, as leis eram inventadas pelos mesmos que tinham de se submeter a elas: era preciso ter cuidado na assembleia para não aprovar leis ruins, pois qualquer um poderia ser sua primeira vítima... Ninguém na cidade estava acima da lei, e a lei (a mesma lei) tinha de ser obedecida por todos. Mas a lei não provinha de nada mais elevado que os homens, não era ordem irrevogável dada pelos deuses ou pelos antepassados míticos; a assembleia dos cidadãos (todos eles políticos, isto é, administradores da sua pólis) era sua origem e, portanto, podia modifica-la ou aboli-la se a maioria achasse conveniente. Os antigos atenienses estavam tão convencidos de que sua obediência se devia apenas às leis e não a pessoas, por mais "especiais" que fossem (não aceitavam especialistas em mandar), que a maioria das magistraturas e de outros cargos públicos da pólis era decidida pr sorteio! Como todos os cidadãos eram iguais, como nenhum deles podia negar-se a cumprir suas obrigações políticas para com a comunidade (todo mundo participava das decisões e podia vir a ocupar cargos de autoridade, mas era obrigatório decidir e mandar, se lhe coubesse), sortear os cargos políticos parecia aos gregos a melhor solução.
Isonomia? A mesma lei para todos? Igualdade política? Já estou ouvindo você protestar. Como podia ser verdadeira essa igualdade, se tinham escravos! De fato, os escravos não participavam da vida política grega. tampouco as mulheres (que, por certo tiveram que esperar nada menos de 26 séculos, até ontem, por assim dizer, para ter plenos direitos políticos - salvo nos países islâmicos, onde continuam esperando). Você tem razão em seu protesto, mas não se esqueça de que, desde aquela longíqua Grécia, passaram-se muitas centenas de anos e muitas crenças foram revistas. Os pioneiros atenienses nunca sustentaram que todos os seres humanos têm direitos políticos iguais: o que eles inventaram e estabeleceram é que todos os cidadãos atenienses tinham direitos políticos iguais. E sabiam que nem todo o mundo era cidadão ateniense: era preciso ser varão, de certa idade, não escravo, nascido na pólis, etc. Mas todos os que reuniam esses requisitos eram politicamente iguais. Garanto-lhe que a mudança de mentalidade já é bastante revolucionária para o que então existia na Pérsia, no Egito, na China ou no México dos astecas. (...) Não pretendo idealizar a organização política ateniense (...) a democracia nasceu entre conflitos e serviu para aumentá-los, em vez de resolvê-los.
Savater, Fernando, Política para meu
filho, São Paulo: Planeta, 2012, p.63-65.
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