segunda-feira, 28 de setembro de 2020

A Filosofia e o cotidiano: engajamento político

É comum encontramos um grande número de pessoas que dizem não gostar de política. Muitos repetem essa afirmação quase automaticamente, sem fazer uso de maiores análises ou de reflexões mais profundas. Todavia, a política é uma atividade que, mesmo rejeitada e incompreendida, é parte essencial da vida cotidiana. 

Foi por meio da atividade política que se garantiram alguns direitos comuns às várias sociedades e, com estes, vieram também deveres que tornaram possível a convivência entre as pessoas e o surgimento da sociedade civil. 

Mas será que a política é uma atividade realizada apenas pelos que se ocupam do poder, ou seja, pelos políticos? Será também que não podemos fazer nada para melhorar as condições do bairro ou da cidade em que vivemos? Como podemos interferir ou dar nossa opinião se acreditamos que a política não tem nada a ver conosco?

Essas perguntas nos levam a pensar sobre nosso papel de cidadãos e o modo como interferimos na vida de nossa cidade ou mesmo de nosso país. 

Cotidianamente, costumamos compreender como ações políticas apenas aquelas que são realizadas pelo Estado, seus representantes ou pelas instituições sociais. No entanto, quando nos organizamos em associações de bairro ou realizamos abaixo-assinados para pedirmos melhorias na iluminação pública, por exemplo, também estamos fazendo política. Ela está presente na maioria das relações sociais e não diz respeito apenas aos políticos: é uma atividade realizada por todos os cidadãos. 

Aristóteles considerava o homem como um animal político. Um ser que se envolve na vida da cidade e age eticamente em vista de um fim maior, que é o bem dos cidadãos como um todo. A consciência de que apenas estar inserido na sociedade não é prova de que haja cidadania é um aspecto extremamente importante na tentativa de construir um sistema político forte e estruturado.

A condição de cidadão se dá na participação política daquele que se proclama como tal, e esta passa por qualquer contribuição pessoal ou coletiva que vise à melhoria da sociedade. 

Na história do Brasil não foram poucas vezes que o povo se mobilizou pro causas, governos ou proposições consideradas injustas. Revoltas populares como a Revolta da Vacina e a Revolta da Chibata, ocorridas na Primeira República, mostravam que a história brasileira, ao contrário do que se costuma afirmar, está repleta de lutas contra a discriminação e pela construção da igualdade. A ditadura militar, por exemplo, acabou em 1985, e ainda vivemos as consequências da tortura e do desaparecimento de presos políticos, permanecendo muitos casos ainda sem solução. Em 1992, a população saiu às ruas para pedir a deposição (impeachment) do presidente Fernando Collor. Na ocasião, a participação dos jovens foi fundamental. 

As mobilizações populares são um termômetro da insatisfação do povo e ajudam a pressionar os governantes a rever posturas e traçar novos caminhos. Em junho de 2013, milhares de pessoas foram às ruas para reivindicar a redução da tarifa de ônibus em São Paulo. Algumas reações violentas por parte das autoridades e o aparato das redes sociais levaram o movimento a assumir grandes proporções, espalhando-se por todo o país. Uma mobilização dessa proporção não era vista há algum tempo no país e abriu espaço para discussões sobre novas formas de protestos e de engajamento político.

Reivindicar os serviços a que se tem direito, cobrar daqueles que governam o país que apresentem uma postura ética e transparente são formas de participação política, do mesmo modo que a preocupação com a reciclagem do lixo ou com o desperdício da água também são. Antes de começarmos essa conversa, porém, vejamos como alguns jovens se mobilizaram politicamente em um importante momento da história recente. 

Autoridade e poder

(...) tecnicamente e em sentido mais amplo, podemos definir a política como o conjunto das relações de poder vividas na sociedade. Desde o núcleo familiar até o ambiente profissional estamos diariamente submersos em relações políticas, ou melhor, relações que são regidas por alguma espécie de poder. 

Em nossos empregos vivemos sob as regras que nos são impostas pelas empresas, seus horários, procedimentos e hierarquias. Na família, a autoridade dos pais é um valor frequentemente cultivado. Nas religiões, os líderes espirituais têm o respeito e orientam a vida dos seus fiéis. A vida social é organizada pelas relações de poder, e este consiste na maneira como os indivíduos estabelecem relações de força, com base em sua situação na sociedade.

Ao usar o termo força, não estamos nos referindo à força física. Em política podemos definir força como a capacidade de incentivar ou de inibir ações. Os valores que adquirimos no decorrer de nossas vidas fazem que respeitemos algumas pessoas como nossos pais e reconheçamos a autoridade de algumas instituições como as igrejas, a escola ou a polícia, por exemplo. Essa autoridade se constitui porque há um grupo que a exerce e um grupo que a reconhece, legitimando-a por um acordo, tradição ou mesmo por uma imposição. 

Por que é importante entendermos esses termos? Justamente, porque a participação política tem a ver com a realização constante de uma crítica sobre a legitimidade do poder a que estamos submetidos. Devemos acompanhar as ações que nos governam e protegem para termos a certeza de que o melhor para todos está sendo realizado, sem que interesses particulares particulares estejam à frente dos interesses do povo. 

A democracia é uma forma de garantir que todos tenham acesso e o direito a certa gama de bens comuns, garantidos e especificados nas leis: saúde, moradia, direitos trabalhistas, por exemplo. Avançar politicamente é possibilitar que essa consciência seja partilhada por todos. Perceber que ações individuais podem afetar direitos coletivos, envolver-se nas questões que influenciam a vida de nosso bairro, mobilizar-se em prol de uma causa podem ser considerados frutos de uma conscientização política. 

Se pensarmos em nossas relações com a sociedade, veremos que um dos elementos centrais das transformações que ocorrem em nosso meio é o trabalho. Por meio dele, as pessoas transformam as coisas do mundo, mas também transformam a si mesmas. É pela lógica do trabalho que se estabelecem relações sociais, profissionais e afetivas entre as pessoas. Além disso, o trabalho é uma forma de superar o determinismo e as condições impostas pela natureza e por outras pessoas. No entanto, há o trabalho que liberta, gera disciplina, e o trabalho que aliena e aprisiona. Esta última maneira se encararmos o trabalho produz distorções na sociedade que somente se amenizam por meio da conscientização e da participação política dos trabalhadores. Soma-se a isso o fato de que devemos também prestar atenção às questões relativas ao lazer, que podemos considerar como uma contraparte fundamental para as atividades profissionais. 

Texto retirado do material Coleção Viver, Aprender, Ciências Humanas, Ensino Médio, São Paulo: editora Global, 2013..

sexta-feira, 18 de setembro de 2020

Por um contrato natural - trechos selecionados da obra de Michel Serres, Tempo de crises.

"As ciências falam das coisas do mundo e as sociedades das sociedades; os administradores e os políticos ocupam-se das cidades, não das coisas do mundo. (...)

Arrisco a hipótese de que a nossa cultura e a nossa história ocidentais se foram afirmando por levarem o Mundo cada vez menos em consideração. Passamos a nossa vida, consagramos os nossos pensamentos a abandonar a Biogeo. Objetivando-a, até as nossas ciências a põem à distância. Todas as culturas levam o Mundo em consideração, salvo, sem dúvida, a nossa, que por exemplo substituiu o direito natural antigo por um direito natural moderno, exclusivamente fundado numa suposta natureza humana. (...) Cidade intramuros, sociedade de humanos entre si, fora do campo, fora da rusticidade, fora das ciências duras, fora do Mundo. Só contam os sujeitos, coletivos ou individuais, narcisos juntos no seu prado.

Ora a nossa cultura sem mundo descobre subitamente o Mundo como uma totalidade (...) A nossa voz cobria o Mundo. Ele faz ouvir a sua. Abramos os ouvidos.

Degelo, subida das águas, furações, pandemias infecciosas: a biogeo põe-se a gritar. Ainda que estável sob os nossos pés, o Mundo global cai subitamente em cima da cabeça das mulheres e dos homens. Eles estavam tão pouco à espera disso que, na sua sociedade sem mundo, não sabem como acolher as ciências que acabam de proceder à adição das coisas do muno para as quais estavam voltadas, de medir as suas forças soberanas e de ouvir a estranha voz dessa totalidade. (...)

E como o Mundo cai subitamente em cima das nossas cabeças, apercebemo-nos, espero que não demasiado tarde, de que ao jogos a dois, que tantas vezes compunham as nossas penas e as nossas guerras e sempre os nossos colóquios e as nossas deliciosas encenações, substitui-se, acabo de o dizer, um novo jogo a três que altera as regras e o conjunto das questões que é urgente tratar.

(...) A crise atual decorre do fato de as nossas culturas e as nossas políticas sem mundo estarem a morrer. Termina uma era imensa da nossa história;"

 Serres, Michel, Tempo de crises, Lisboa: Guerra e Paz, 2019.

Igualdade entre homens e mulheres (1622) - Marie de Gournay

  “A maioria dos que defendem a causa das mulheres, lutando contra essa orgulhosa preferência que os homens se atribuem, lhes dá o troco com...