"As ciências falam das coisas do mundo e as sociedades das sociedades; os administradores e os políticos ocupam-se das cidades, não das coisas do mundo. (...)
Arrisco a hipótese de que a nossa cultura e a nossa história ocidentais se foram afirmando por levarem o Mundo cada vez menos em consideração. Passamos a nossa vida, consagramos os nossos pensamentos a abandonar a Biogeo. Objetivando-a, até as nossas ciências a põem à distância. Todas as culturas levam o Mundo em consideração, salvo, sem dúvida, a nossa, que por exemplo substituiu o direito natural antigo por um direito natural moderno, exclusivamente fundado numa suposta natureza humana. (...) Cidade intramuros, sociedade de humanos entre si, fora do campo, fora da rusticidade, fora das ciências duras, fora do Mundo. Só contam os sujeitos, coletivos ou individuais, narcisos juntos no seu prado.
Ora a nossa cultura sem mundo descobre subitamente o Mundo como uma totalidade (...) A nossa voz cobria o Mundo. Ele faz ouvir a sua. Abramos os ouvidos.
Degelo, subida das águas, furações, pandemias infecciosas: a biogeo põe-se a gritar. Ainda que estável sob os nossos pés, o Mundo global cai subitamente em cima da cabeça das mulheres e dos homens. Eles estavam tão pouco à espera disso que, na sua sociedade sem mundo, não sabem como acolher as ciências que acabam de proceder à adição das coisas do muno para as quais estavam voltadas, de medir as suas forças soberanas e de ouvir a estranha voz dessa totalidade. (...)
E como o Mundo cai subitamente em cima das nossas cabeças, apercebemo-nos, espero que não demasiado tarde, de que ao jogos a dois, que tantas vezes compunham as nossas penas e as nossas guerras e sempre os nossos colóquios e as nossas deliciosas encenações, substitui-se, acabo de o dizer, um novo jogo a três que altera as regras e o conjunto das questões que é urgente tratar.
(...) A crise atual decorre do fato de as nossas culturas e as nossas políticas sem mundo estarem a morrer. Termina uma era imensa da nossa história;"
Serres, Michel, Tempo de crises, Lisboa: Guerra e Paz, 2019.
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