terça-feira, 29 de dezembro de 2020

Aristóteles e a política

O livro Política de Aristóteles traz uma passagem muito famosa na qual o filósofo afirma que o "homem é por natureza um animal político." Segundo Aristóteles, a evidência de que o homem seria um animal político, mais do que as abelhas e os outros animais gregários (que vivem juntos) é o fato de só o homem possuir a palavra [logos /linguagem]

"Como dizemos frequentemente, a natureza não faz nada em vão; ora, o homem é o único entre os animais a ter linguagem (logos). O simples som é uma indicação do prazer ou da dor, estando portanto em outros animais, pois a natureza destes consiste em sentir o prazer e a dor e em expressá-los. Mas a linguagem tem como objetivo a manifestação do vantajoso e do desvantajoso, e portanto do justo e do injusto. Trata-se de uma característica do homem ser ele o único que tem o senso do bom e do mau, do justo e do injusto, bem como de outras noções deste tipo. É a associação dos que têm em comum essas noções que constitui a família e o Estado." ARISTÓTELES, Política.

Segundo Aristóteles, faria parte da nossa própria natureza nos juntarmos a outros iguais a nós para compartilhar as dores e alegrias da vida. Primeiro nos reuniríamos em famílias; várias famílias reunidas formam uma aldeia; várias aldeias crescendo num mesmo espaço formam uma pólis. A pólis seria assim não uma "invenção" humana, mas a realização da própria natureza dos seres humanos. 

No entanto, como observa Silvio Gallo, "ainda que uma cidade se origine de uma reunião natural de famílias, não podemos ver essas comunidades humanas como uma simples continuidade." Pois Aristóteles afirmava a existência de duas esferas, a privada - relativa à família e à casa de cada um - e a pública - relativa à comunidade política, à cidade. Sendo assim, enquanto a economia (oicos - casa + nomos -leis, regras) é a ciência da gestão casa, a política ( politika - as coisas relativas à pólis) é ciência da gestão da cidade. 

Aristóteles identifica diferente tipos de poder próprios de cada uma das esferas acima identificadas. "na esfera privada, doméstica, um pai de família exerce quatro tipos de poder: um poder econômico, que é a faculdade de organizar e gerir sua própria casa; um poder paternal sobre os filhos; um poder marital sobre a mulher; e um poder despótico sobre quem é por ele escravizado." (GALLO, 2017).  Já na esfera pública, no contexto da democracia ateniense, a política era uma atividade que acontecia entre iguais (aqueles que eram considerados cidadãos: homens livres, filhos de pais atenienses, em dia com o serviço militar). 

De acordo com Gallo, "ainda que seja resultado de um processo natural, a comunidade política tem uma finalidade principal: o "bem viver juntos". E o bem viver, para Aristóteles, consiste na felicidade - "felicidade privada", que diz respeito à vida de cada um, e "felicidade pública", que está relacionada com a vida pública na sociedade." Uma cidade feliz é aquela na qual os cidadão têm a possibilidade de se dedicar à atividades que garantem aquelas felicidades, a saber, a contemplação e a dedicação ao pensamento (felicidade privada) e participação na política (felicidade pública).

Assim como seu mestre Platão, Aristóteles não tinha simpatia pela democracia. No entanto, Aristóteles também não se convenceu de que a sofocracia de seu mestre fosse a melhor opção. Depois de identificar as seis formas de governo recorrentes, a partir dos critérios de número e de valor: Monarquia, Aristocracia, Politia (formas boas de governo) / Tirania, Oligarquia e Democracia (formas corrompidas de governo), Aristóteles aposta num governo misto como sendo a melhor forma de garantir estabilidade à cidade. Uma mistura entre democracia e oligarquia - na qual nem os ricos (oligarquia) nem os pobres (democracia) estariam no poder, mas uma classe intermediária. 

A influência de Aristóteles no pensamento político ocidental é muito grande. As seis formas de governo por ele tipificadas foi referência para boa parte dos filósofos que vieram depois dele. 

Material consultado: GALLO, Silvio, Filosofia: experiência do pensamento, São Paulo: Scipione, 2017.


segunda-feira, 28 de dezembro de 2020

Democracia racial: mito ou realidade? - Abdias do Nascimento

 Trechos selecionados de texto publicado no Portal Geledés 

O Brasil, como nação, se proclama a única democracia racial do mundo, e grande parte do mundo a vê e respeita como tal.
Mas, um exame de seu desenvolvimento histórico revela a verdadeira natureza de sua estrutura social, cultural e política: é essencialmente racista e vitalmente ameaçadora para os negros.
Através da era da escravidão, de 1530 a 1888, o Brasil levou a cabo uma política de liquidação sistemática dos africanos.
Desde a abolição legal da escravidão, em 1888, até agora, essa política tem sido levada avante por meio de mecanismos bem definidos de opressão, mantendo a supremacia branca isenta de ameaças neste país.
Durante a escravidão, a opressão aos africanos era tão flagrante que mereceu pouca atenção aqui; eram considerados sub-umanos e forçados a viver na imundície, miséria e degradação de seu status social. Isso significa negligência médica e higiênica, desnutrição, sujeição e abuso sexual.
Essa opressão física e econômica resultou na degradação mental e cultural do escravo, como todos estamos familiarizados. Depois da abolição, os senhores, principalmente os possuidores das plantações de café nos estados do Sul, recusaram-se a empregar os negros livres como trabalhadores, dando preferência aos imigrantes europeus brancos.
Assim negavam a seus antigos escravos os elementos mais básicos de subsistência, acusando-os de indolência e de não terem interesse em levar uma vida produtiva.
Eles ignoravam um fator básico: eles próprios haviam transformado o escravo em “pouco mais que uma besta e pouco menos que uma criança”, através da exploração infame, transformando os resultados de sua exploração em argumento contrário a qualquer possibilidade do escravo ser um homem livre.
Desde os tempos da escravidão, o instrumento mais valioso de genocídio físico e espiritual da raça Negra tem sido a estrutura do poder político de branqueamento da população brasileira.
Os testemunhos da orientação, predominantemente racista, são muitos e variados.
Atestam a atitude prevalecente de que a população brasileira era feia e geneticamente inferior por causa da presença do sangue negro, precisando por essa razão “se fortalecer através da junção com os valores superiores da raça européia”.
Essa atitude era endossada pela teoria supostamente científica e sociológica, que fornecia suporte intelectual vital à política da classe dominante.
“O meu argumento é que a futura vitória na luta pela vida entre nós pertencerá aos brancos”. O escritor José Veríssimo anotou: “Como nos asseguram os etnógrafos, e como pode ser confirmado ao primeiro olhar, a mistura de raças está facilitando o prevalecimento da raça superior aqui.
Mais cedo ou mais tarde, irá eliminar a raça negra.
Aqui, isto, obviamente já está acontecendo”.
(...) 

Neste pretensioso conceito de “democracia racial”, apenas um dos elementos raciais tem qualquer direito ou poder: o branco.
Ele controla os meios de disseminação da informação, os conceitos educacionais, as definições e valores.
(...)
O papel do escravo negro foi crucial para os começos da história e economia política em um país fundado, como Brasil, sobre o imperialismo parasitário

Sem a escravidão, a estrutura econômica não poderia ter existido.

O escravo construiu as funções econômicas da nova sociedade, curvando e quebrando sua espinha; seu trabalho foi a espinha dorsal da economia. Alimentava e reunia a riqueza física do país com seu sangue e suor, apenas para ver os lucros de seu trabalho apropriados pela força da aristocracia branca. Nas plantações de açúcar e café, nas minas, nas cidades, o africano era os pés da classe branca dominante, que não se degradava a si próprio com o trabalho. As ocupações primárias da classe branca dominante eram a indolência, o culto da ignorância e do preconceito, e a mais debochada luxúria.

(...) 

O Brasil herdou a estrutura de família patriarcal de Portugal; e o preço dessa herança foi pago pela mulher negra, e não só durante a escravidão. Mesmo hoje, a mulher negra, por causa de sua pobreza e falta de status social, é presa fácil e vulnerável da agressão do homem branco. Fato este que foi corajosamente denunciado no manifesto das mulheres negras brasileiras, unidas em um congresso nacional na Associação Brasileira de Imprensa, Rio de Janeiro, 1975.

Esta realidade social é diametralmente oposta ao mito prevalente que promove o desenvolvimento social do Brasil como um processo fácil de integração. Os homens portugueses, de acordo com este mito, não tinham preconceito de raça, ao contrário, sua falta de preconceito lhes permitiu manter uma interação sexual sadia com a mulher negra. Entretanto, um velho dito deste país, tão popular hoje como há um século atrás, desmente este mito, denunciando-o como uma falsa concepção estabelecida pela classe dominante.

O crime sexual da violência, cometido contra a mulher negra pelo macho branco, foi perpetuado através das gerações pelos seus próprios filhos mulatos, que herdaram o precário prestígio de seus pais e continuaram a explorar a mulher negra. Em uma tentativa de aliviar sua própria culpa nesta exploração sexual, a classe dirigente proclamou o mulato como a chave da solução do problema racial: o começo da liquidação da raça negra e o branqueamento da população brasileira. Mas, apesar de qualquer aparente vantagem de status social, a posição do mulato é na realidade equivalente à do negro: o mulato sofre o mesmo desprezo, discriminação e preconceito na sociedade branca.

* Trecho da tese apresentada por Abdias do Nascimento no II Festival de Artes e Culturas Negras e Africanas (Festac), em 1977.

quarta-feira, 16 de dezembro de 2020

Trechos selecionados do livro Escravidão: Do primeiro leilão de cativos em Portugal até a morte de Zumbi dos Palmares, de Laurentino Gomes

"A humanidade se divide em duas: os senhores e os escravos; aqueles que têm o direito de mando, e os que nasceram para obedecer." Aristóteles, filósofo grego

(...) "A escravidão existiu desde o início da história da humanidade até o século XX, nas sociedades mais primitvias e também nas mais avançadas", escreveu o sociólogo e historiador jamaicano Orlando Patterson, um dos mais renomados especialistas no tema, professor da Universidade de Harvard, nos Estados Unidos. "Não há uma única região do planeta que em algum momento não tenha abrigado essa instituição. Provavelmente não existe hoje nenhum grupo de pessoas cujos ancestrais nunca tenham sido em algum momento escravos ou dono de escravos." Ainda segundo Patterson, a escravidão foi não apenas universal ao longo de toda a história humana como floresceu em lugares e períodos que o senso comum menos esperaria. "Na verdade, ela aumentou justamente em épocas e culturas que a moderna civilização ocidental considera hoje como divisoras de águas na história do seu desenvolvimento". 

Estima-se que, por volta de 1800, ou seja, há apenas dois séculos, houvesse aproximadamente, 45 milhões de escravos em todo o mundo, ou 5% do total de seres humanos então existentes no planeta. Na Índia e na China, que já nauqela época detinham mais da metade da população mundial, cerca de 10% dos habitantes viviam em cativeiros. Esse era o total de pessoas que poderiam ser compradas e vendidas na época como mercadorias. 

(...) A escravidão nem sempre foi ligada a uma raça ou uma cor de pele. Os historiadores William G. Clarence-Smith e David Eltis calculam que, até trezentos anso atrás, o total de escravos brancos, amarelos e indianos na Europa, no Oriente Médio e na Ásia era provavelmente muito superior ao número de africanos cativos transportados para a América pelo tráfico Atlântico. Só no final do sécullo XVII a população de escravos negros se tornou majoritária. Até então, pessoa de todas as cores, religiões, culturas e classes sociais, eram passíveis de serem escravizadas. Prova disso é a própria etimologia da palavra "escravo".

Escravo, em português, esclave, em francês; schiavo, em italiano; sklave, em alemão; ou slave, em inglês, são todas palavras derivadas do latim slavus, que, por sua vez, servia para designar os eslavos, nome genérico dos habitantes da região dos Bálcãs, Leste Europeu, sul da Rússia e margens do Mar Negro, grande fornecedora de mão de obra para o Oriente Médio o Mediterrâneo até o inicio do século XVIII. Ou seja, nesse caso, os escravos geralmente eram pessoas brancas, de cabelos loiros e olhos azuis. 

(...)

Patterson também definiu a escravidão como uma "morte social", na qual o cativo é arrancado do seu lugar de moradia, de sua língua, suas crenaças, seus laços familiares e seus ancestrais, sua comunidade e seus costumes, uma espécie de desenraizamento, ou excomunhão da família e da sociedade originais. O resultado é a completa obliteração de sua identidade antiga para a construção de uma nova, dependente e condicionada pelo senhor. O escravo passa a não ter vontade própria. Sua nova existência dependeria por completo do poder de seu dono.

(...) Desse modo, "escravo" se converteu em sinônimo de "estrangeiro", ou de "o outro", aquele que não pertence ao grupo scoial que o domina. (...) Em resumo, segundo as palavras de Paul E. Lovejoy, "a escravidão era fundamentalmente uma maenira de negar ao forasteiro, ou estrangeiro, o outro, os direitos e privilégios de uma sociedade em particular, de modo que pudesse ser explorado com objetivos econômicos, políticos e sociais". 

(...) A história da escravidão na América se distingue das formas mais antigas de cativeiro por duas características principais. A primeira é o regime de trabalho. No passado, os escravos eram usados em serviços domésticos; nas oficinas como marceneiros e ferreiros; na agricultura; nos navios; marchavam como guerreiros para defender as causas de seus senhores e, muitas vezes, chegavam a acupar altos cargos adminstrativos, como os de eunuco escriba ou tesoureiro real. Na Améria, também havia essa classe de ocupações, mas a escravidão se tornou sinônimo de trabalho intensivo em grandes plantações de cana-de-açucar, algodão, arroz, tabaco e, mais tarde, café. Escravos eram usados também na mineração de outro, prata e diamantes. Estavam, portanto, em condição equivalente à das máquinas agrícolas industriais de hoje, como os tratores, os arados, as colhedeiras e as plantadeiras nas modernas fazendas do interior do Brasil. Nos engenhos de açucar, trabalhavam em jornadas exaustivas, em turnos e regime de trabalho organizados de forma muito semelhante à linha de produção, que a partir do final do século XVIII, caracterizariam as fábricas da Revolução Industrial. 

A segunda característica que diferencia a escravidão na América de todas as demais formas anteriores de cativeiro é o nascimento de uma ideologia racista, que passou a associar a cor da pele à condição de escravo. Segundo esse sistema de ideias, usado como justificativa para o comércio e a exploração do trablaho cativo africano, o negro seria naturalmente selvagem, bárbaro, preguiçoso, idólatra, de inteligência curta, canibal, promíscuo, "só podendo ascender à plena humanidade pelo aprendizado na servidão", explica o africanista brasileiro Alberto da Costa e Silva. Sua vocação natural seria, portanto, o cativeiro, onde viveria sob a tutela dos brancos, podendo, dessa forma, alçar eventualmente um novo e mais avançado estágio civilizatório. 

As raízes da ideologia racista, que até hoje persiste entre nós, eram muitas - de natureza teológica, filosófica e, diversas vezes, resultante de observações pretensamente científicas, que se referiam não apenas às diferenças relacionadas à cor da pele, mas também a alguns traços anatômicos peculiares dos negros, como o formato dos olhos, da cabeça e do nariz. 

(...)

"A escravidão não nasceu do racismo; mas o racismo foi a consequência da escravidão", resumiu o historiador Eric Williams.

(trechos selecionados do livro Escravidão: Do primeiro leilão de cativos em Portugal até a morte de Zumbi dos Palmares, de Laurentino Gomes, GloboLivros).

quarta-feira, 28 de outubro de 2020

Eu, empregada doméstica. A senzala moderna é o quartinho da empregada - Preta Rara

(Trechos selecionados)

Comecei a trabalhar em casa de família já não querendo estar naquele lugar, pois a vida inteira percebi como a minha mãe chegava em casa, cansada e às vezes triste. Eu sabia que ela não compartilhava conosco seu dia de trabalho, até porque isso causaria uma tristeza coletiva lá em casa. 

Desde muito nova eu já acompanhava a minha mãe nas faxinas, e querendo que ela acabasse rápido, ia ajudando nos serviços. 

Lembro qeu o único lugar que eu podia sentar era na mesa da cozinha ou na área de serviço. Porém, como sempre fui mega curiosa, questionava a minha mãe dizendo o por que a gente não comia na sala, por que não podia usar o banheiro deles. Minha mãe só falava para eu parar de ser enxerida e ficar quieta. 

Nasci e me criei em Santos, cidade do litoral de São Paulo, e assim que acabei o ensino médio fui atrás de emprego com registro em carteira. 

Lembro que sonhava ser secretária, vendedora de loja de roupa, recepcionista ou qualquer função que eu pudesse ir de salto alto combinando com uma bolsa bonita. 

Meus pais se esforçaram ao máximo para pagar um curso profissionalizante, já que eles não teriam condições de pagar uma universidade. Naquela época, por volta de 2002, eu sai do ensino médio sem saber que existia universidade pública, que mesmo com meu estudo defasado eu poderia tentar prestar vestibular. Nenhum professor da escola estadual que me formei falou isso para a classe. 

Sendo assim, agarrei essa oportunidade do curso profissionalizante e fiz na maior seriedade, como se fosse a única oportunidade da minha vida para não ter o destino de lavar banheiro dos outros. Terminei o curso e comecei a entregar meu currículo bem escrito e digno de uma vaga de trabalho excelente. 

Eram dias mega canstivo, de sair com pouca grana e andar o dia inteiro do centro da cidade de Santos até o bairro Gonzaga entregando currículo. Iffo virou uma dura rotina e nenhum telefonema voltava desse esforço todo. Por diversas vezes eu tinha que optar por ir a pé, que dava uma caminhada de uma hora, pegar o valor da passagem e comer algo; ou ir de ônibus e não comer nada. 

Uma vez me convidaram para ir em uma palestra sobre mercado de trabalho na Educafro, que é um cursinho pré-vestibular para afrodescendentes e carentes. Chegando lá o palestrante falou algo que me acertou como um alvo, justamente sobre o momento que eu estava vivendo: "Preto no Brasil não pode enviar currículo com foto, habitamos um país racista, meu povo. Entreguem currículo sem foto aí vão chamar vocês para entrevistas. Façam esse teste."

Eu saí de lá muito arrasada, pensando em quanta besteira aquele cara havia falado. Lembro de tê-lo achado super preconceituoso. 

Mas foi passando os dias, e eu em minha rotina de acordar cedo para entregar currículo, até que resolvi fazer o teste. Na vaga de emprego que pedia uma boa aparência, tirei uma foto e enviei. Quatro dias depois choveu de telefonema marcando pelo menos uma entrevista. Aquilo me deu uma angústia tão grande. Foi ali que eu entendi o peso de ser preta em um país racista. 

Chegando na entrevista as pessoas tomavam um susto ao perceberem qeu eu era preta. Faziam a entrevista, e pediam pra eu aguardar em casa. 

Já cansada de não conseguir nada, uma amiga me falou que a tia dela estava precisando de alguém que fizesse uma limepeza leve três vezes na semana. Essa minha amiga disse que a tia dela limpava a casa todo dia, que queria alguém mais para manter a limpeza, e que não seri aum serviço pesado. Fiquei pensando se ia ou não, até que resolvi ligar e marcar de ir até aà casa da tia dela. 

(...) Na época, desmpregada, querendo comprar minhas coisas e pagar um curso de inglês, fiquei um pouco chateada porque não era o que eu queria, mas acabei aceitando.

(...) Fui trabalhar naquele lugar, qeu na primeira semana o serviço era bem leve mesmo. Na segunda semana já estava arrumando dentro do guarda-roupa, descongelando a geladeira. Na terceira semana já estava passando roupa. 

Quando me dei conta, estava indo todos os dias, fazendo tudo na casa com o salário de quem era pra ir três vezes na semana. E assim aconteceu em todas as casas em que eu trabalhei. Combinávamos as tarefas, o horário pra entrar, o horário pra sair, o dia do pagamento, mas minhas patroas nunca cumpriam. 

(...)Anos depois eu fui trabalhar na casa dos pais de uma dessas patroas e vivi um episódio horrível. Era aquela época em qeu uma tla marca de leite estava contaminada com soda cáustica. O pai da minha ex-patroa pedi para que eu comprasse leite para o café da tarde, e eu desci até a padaria para comprar. 

Na minha casa, pelo baixo salário dos meus pais a gente comprava tudo do mais barato, e já tinha esse hábito, assim fiz. Peguei o leite e fui acabar de preparar o café. Quano esse homem viu a caixa de leite na pia, teve um surto e gritou tnato que eu deixei o saco de pão cair no chão. Ele disse:"Sua neguinha petulante, quem você pensa que é pra comprar essa porcaria pra minha casa? Se no muquifo da sua favela, lá onde você mora, cês tão acostumado tomar esse lixo, leva rpa sua casa. Eu não vou tomar isso."

(...)

Em 2016 eu já estava formada e lecionava no Colégio Exemplo em São Vicente. Estava num momento muito feliz, tinha acabado de lançar meu disco o Audácia, estava na correria louca de conciliar show e minhas aulas. Em um momento de férias, mroando sozinha em frente à praia, comecei analisar tudo o qeu eu estava vivendo e a minha mente automaticamente foi para um momento do passado, que eu fazia questão de esquecer, porém ele ainda era recente na minha cabeça.

Por conta da correria ainda não tinha parado para analisar que já tinh sonhado com o que estava vivendo. Era meu sonho morar em frente à praia, gravar um disco de rap e ser professora de História. Tudo aquilo já era, tinha conseguido. 

Foi então qeu eu lembrei da minha fase de ser empregada doméstica, que na época já se faziam sete anos, que u tinha me livrado daquela situação. 

Como eu já escrevia algumas reflexões com viés político em meu perfil do Facebook, resolvi psotar minha última experiência como doméstica e invenit uma hashtag. Falei para as pessoas que tiveram e tivessem experiências como a minha, escrevessem e me marcassem, assim eu poderia ler também. Reforcei que não esquecessem de colocar#EuEmpregadaDomesetic, pois assim eu conseguiria acompanhar os relatos. Isso aconteceu no dia 19 de julho de 2016.

Lembro que fiz essa postagem, limpei a minha casa e fui para o estúdio ensaiar, pois tinha um show grande pra fazer. Quando cheguei no estúdio já era umas 21h e os caras da minha banda começaram a falar: "Meu, você mexeu num vespeiro. Tá todo mundo falando sobre isso, já tem até matéria em site."

Fiquei sem saber do que eles estavam falando. Foi quando um deles me mostrou o post no Facebook com quase 10 mil likes e mais de 5 mil compatilhamentos. Aquele meu post tinha viralizado no Brasil com menso de 24 horas. 

Os dias seguintes foram uma loucura. Naquela madrugada pós-ensaio eu resolvi criar uma página e postar todos os relatos recebidos. Aconteceu tudo tão rápido que me lembro que passei o restando dos dias das minhas férias lendo todos os e-mail e os relatos postados na página. 

Dois dias depois estava na minha primeira entrevista internacional para a BBC Londres falando sobre minhas experiências como doméstica e como era o serviço no Brasil.

(...) Lembro que fiquei muito feliz e orgulhosa. No final da palestra veio à tona tudo o qeu já tinha passado com a Dona Margarida, que era professora universitária, que certa vez disse que eu tinha que ser feliz no que já estava predestinado pra mim, que era servir. Toda a minha história, assim como as das outras mulheres passaram como um flash em minha mente, e eu desabei em lágrimas. 

(...) Finalizo esse livro dizendo que tudo que aconteceu não foi meritocracia, até porque se fosse por mérito, eu e várias domésticas já tinhamos alcançado voos mais altos e rápidos.Tudo é resultado de muita disposição para chacoalhar as estruturas da família brasileira elitista branca que ama um ranço colonialista racista. 

(...) Estamos na luta por dias melhores, para garantir nossos direitos trabalhistas até sermos respeitadas dentro do nosso local de trabalho. Estamos na luta em busca de uma relação trabalhaista na qual humanizam nossa existência. 

PRETA-RARA, Eu, empregada doméstica. a senzala moderna é o quartinho da empregada, Preta-Rara, Belo Horizonte: Letramento, 2019.

sexta-feira, 23 de outubro de 2020

Ética para meu filho, Fernando Savater

"(...) Se eu não pensar no que faço mais de uma vez, talvez me baste a resposta de que estou agindo assim "porque é costume". Mas por que diabos tenho de fazer sempre o que se costuma fazer (ou o que costumo fazer)? Nem que eu fosse escravo dos que me cercam, por mais que sejam meus amigos, ou do que fiz ontem, anteontem ou no mês passado! Se vivo cercado de gente que tem o costume de discriminar os negros, e se não acho isso certo de jeito algum, por que devo imitá-los? Se me acostumei a pedir dinheiro emprestado e não devolver, mas cada vez tenho mais vergonha de fazê-lo, por que não mudar de comportamento e começar, a partir de agora, a ser mais correto? Por acaso um costume não pode ser pouco conveniente para mim, por mais acostumado que eu esteja? Quando me interrogo pela segunda vez sobre meus caprichos, o resultado é parecido. Muitas vezes tenho vontade de fazer coisas que logo se voltam contra mim, das quais depois me arrependo. Em assuntos sem importância o capricho pode ser aceitável, mas, quando se trata de coisas mais sérias, deixar-me levar por ele, sem refletir sobre se é um capricho conveniente ou inconveniente, pode ser muito pouco aconselhável, até perigoso: o capricho de sempre atravessar os semáforos no vermelho pode ser divertido uma ou duas vezes, mas será que vou conseguir viver muito se continuar a fazê-lo dia após dia?

(...) A palavra "moral" tem a ver, etimologicamente, com os costumes, pois é exatamente isso que significa o termo latino mores e também com as ordens, pois a maioria dos preceitos morais soam como "você deve fazer isso" ou "nem pense em fazer aquilo". No entanto, há ordens e costumes - como já vimos - que podem ser maus, ou seja, imorais, por mais ordenados e "acostumados" que se apresentem. Se quisermos nos aprofundar de verdade na moral, se quisermos aprender seriamente a empregar bem a liberdade que temos (e é justamente nesse aprendizado que consiste a "moral" ou "ética" de estamos falando aqui), é melhor deixarmos de lado ordens, costumes e caprichos. A primeira coisa que é preciso deixar claro é que a ética de um homem livre nada tem a ver com os castigos nem com os prêmios distribuídos pela autoridade, seja ela autoridade humana ou divina - neste caso, tanto faz. Quem não faz mais do que fugir do castigo e buscar a recompensa conferida por outros, segundo normas estabelecidas por eles, não é melhor do que um pobre escravo. (...) Aqui vai um esclarecimento terminológico. Embora eu vá utilizar as palavras "moral" e "ética" como equivalentes, de um ponto de vista técnico (desculpe-me estar mais professoral do que de hábito) elas não têm significado idêntico. "Moral" é o conjunto de comportamentos e normas que você, eu e algumas das pessoas que nos cercam costumamos aceitar com válidos; "ética" é a reflexão sobre por que os consideramos válidos e a comparação com outras "morais" de pessoas diferentes. Mas, enfim, aqui continuarei utilizando as duas palavras indistintamente, sempre como arte de viver. A academia que me perdoe...

Lembre-se de que as palavras "bom" e "mau" não se aplicam apenas a comportamentos morais, nem apenas a pessoas. (...)

Para alguns, ser bom significará ser resignado e paciente, mas outros considerarão boa a pessoa empreendedora, original, que não se acovarda na hora de dizer o que pensa, mesmo que possa incomodar alguém. Em países como a África do Sul, por exemplo alguns considerarão bom o negro que não reclama e se conforma com o aparthaid, ao passo que outros só chamarão assim os que seguem Nelson Mandela. Sabe por que não é fácil dizer quando um ser humano é "bom" e quando não é? Porque não sabemos para que servem os seres humanos. (...)

É possível ser um bom homem (e uma boa mulher, é claro) de muitas maneiras, e as opiniões que julgam os comportamentos geralmente variam conforme as circunstâncias. Por isso, às vezes, dizemos que Fulano ou Sicrana são bons "a seu modo". Admitimos assim que há muitas formas de sê-lo e que a questão depende do âmbito em que cada um se move. Como você vê, não é fácil determinar de fora quem é bom e quem é mau, quem faz o que convém e quem não faz. Seria preciso estudar não apenas todas as circunstâncias de cada caso, mas até as intenções que movem cada um. Pois poderia acontecer que alguém pretendesse fazer alguma coisa má e, por acaso, acabasse obtendo um resultado aparentemente bom. E não chamaríamos "bom" alguém que fizesse algo bom por mero acaso, não é mesmo? Também é verdade o contrário: com a melhor intenção do mundo alguém poderia provocar um desastre e ser considerado um monstro, sem ter culpa. Mas acho que por esse caminho tiraremos pouca coisa a limpo, sinto muito."

SAVATER, Fernando. Ética para meu filho, 2º ed, São Paulo: Planeta, 2012. 

Igualdade entre homens e mulheres (1622) - Marie de Gournay

  “A maioria dos que defendem a causa das mulheres, lutando contra essa orgulhosa preferência que os homens se atribuem, lhes dá o troco com...