quarta-feira, 23 de novembro de 2022

Igualdade entre homens e mulheres (1622) - Marie de Gournay

 “A maioria dos que defendem a causa das mulheres, lutando contra essa orgulhosa preferência que os homens se atribuem, lhes dá o troco completo, pois redirecionam a preferência para elas. Quanto a mim, que fujo de todos os extremos, contento-me em igualá-las aos homens; em ralação a isso, a natureza também se opõe tanto à superioridade quanto à inferioridade. O que estou dizendo? Para alguns não é suficiente preferir o sexo masculino ao feminino, elas também decretam que este deve estar incontestável e necessariamente confinado à roca de fiar, isso mesmo, somente à roca de ficar. Todavia, o que pode consolá-las desse desprezo é que ele só vem dos homens com os quais elas menos gostariam de se parecer: pessoas que tornariam plausíveis as acusações que poderiam ser vomitadas no sexo feminino, se pertencessem a ele, e que sentem em seus corações que só podem se enaltecer através do crédito do outro. (…) Contudo, quem acreditaria que aqueles que querem se elevar e se fortificar com a fraqueza de outrem, possam se elevar e se fortificar com sua própria força? (…) Mas se eles se julgam homens galantes e capacitados, com se por meio de um edito, por que não tonariam tolas as mulheres por meio de um edito contrário? E se julgo bem, tanto a dignidade quanto a capacidade das mulheres, não tenho a pretensão de prová-los neste momento com argumentos, uma vez que os presunçosos poderiam debate-los, não com exemplos, posto que estes são demasiados comuns; mas sim, somente com a autoridade do próprio Deus, dos sustentáculos da sua Igreja, e desses grandes homens que serviram de luz para o Universo. Coloquemos essas gloriosas testemunhas na primeira fila, e guardemos Deus e os santos padres de sua Igreja como nosso tesouro.

Platão, cujo título de Divino ninguém jamais contestou, e consequentemente Sócrates, seu intérprete e modelo seus escritos (se não foi o próprio Sócrates seu preceptor mais divino) atribuem às mulheres, em suas repúblicas e em todos os outros lugares, os mesmos direitos, faculdades e funções. (…) Portanto, se as mulheres chegam com menos frequência do que os homens aos mais altos graus de excelência, é surpreendente que a falta de uma boa educação, ou mesmo a reunião de uma educação rígida e religiosa, não tenha um resultado pior, impedindo-as por completo de lá chegar. (…) Em seu opúsculo sobre os Feitos virtuosos das mulheres, Plutarco defende que a virtude do homem e da mulher são iguais. Por outro lado, Sêneca publica nas Consolações que devemos acreditar que a natureza não tratou as mulheres de maneira ingrata, nem reduziu e restringiu suas virtudes e sua inteligência mais do que a inteligência e as virtudes dos homens. Pelo contrário, ela os dotou de um vigor e de faculdades iguais para tudo que fosse honesto e louvável. (….) Há necessidade de apresentar infinitas outras mentes antigas e modernas de nome ilustre? (…)” 

Arqueofeminismo: mulheres filósofas e filósofos feministas século XVII-XVIII, org. Maxime Rovere, São Paulo:n-1 edições, 2019.  

Marie de Gournay (1565-1645) - Rosa Montero - Nós, mulheres: grandes vidas femininas

 Provinha de uma família arruinada, e também foi autodidata, como tantas outras mulheres na história (até onde poderiam chegar esses talentos femininos se pudessem ter estudo devidamente?). Mesmo assim, Marie conseguiu aprender latim e grego, física, geometria, literatura e história. Grande admiradora das obras de Montaigne, pôde conhecê-lo aos 23 anos. O filósofo tinha 54 e ficou impressionado com a inteligência da jovem De Gournay: animou-a a publicar e se transformou numa espécie de mentor para ela. Marie, que nunca se casou, levou uma vida economicamente precária, mas independente, como escritora e tradutora profissional. Editou e fez a introdução das obras completas de Montaigne depois de sua morte e publicou diversos textos próprios; o mais importante foi o tratado feminista Sobre a igualdade de homens e mulheres, no qual sustenta que uns e outras só diferem fisicamente, e que se as mulheres não estavam aptas a tratar de matérias como a ciência ou a filosofia, era simplesmente porque o acesso ao conhecimento lhes fora proibido. Ela sabia disso muito bem. 

MONTERO, Rosa, Nós, mulheres: grandes vidas femininas, tradução Josely Vianna Baptista, São Paulo: Todavia, 2020.

quarta-feira, 1 de setembro de 2021

Variações sobre o prazer (Rubem Alves)

 “Afirmar a bondade do prazer é escandaloso no Ocidente.” A espiritualidade ocidental foi construída sobre a negação do prazer. As feridas e lacerações que a espiritualidade católica elegeu como objetos de adoração são expressões plásticas desse fato. E o ascetismo e disciplina de trabalho, virtudes supremas do protestantismo, são a sua manifestação racional e moral.

(...) Mas eu acredito que vivemos para ter prazer. Bachelard era mais ousado do que eu e não se envergonhava de afirmar: “O universo tem, para além de todas as misérias, um destino de felicidade. O homem deve reencontrar o Paraíso”. (...) O destino da razão é servo do prazer e da alegria. Creio na função educativa e intelectual do prazer. Uma inteligência feliz é uma inteligência... mais inteligente...

 (...)

Por muito tempo, influenciado pela psicanálise, usei a palavra “prazer” para me referir ao impulso fundamental que movimenta o corpo. Hoje a palavra prazer já não me satisfaz. O corpo não se contenta com o prazer. Uma das muitas amantes de Tomás dizia: “Eu não quero prazer. Eu quero é alegria!”. A experiência do prazer, tão boa, sempre nos coloca diante de um vazio. A teologia de santo Agostinho se constrói sobre esse vazio que se segue ao prazer. Depois de esgotado o prazer, existe, na alma, a nostalgia por algo indefinível. Que indefinível é esse que, se encontrado, nos traria a alegria? Estou pronto a concordar com o santo: um indefinível que, se encontrado, me traria alegria, eu o adoraria como deus, a ele entregaria a minha vida.
  Pus-me então a pensar sobre a diferença entre prazer e alegria – ambos muito bons. E estas foram as conclusões a que cheguei.
 
Sobre o prazer:
(1) O prazer só acontece se o corpo tiver a posse do seu objeto. O prazer do sorvete só existe se houver um sorvete a ser lambido. O prazer do suco de pitanga só existe se houver suco de pitanga para ser bebido. O prazer do beijo só existe se houver a pessoa amada a ser beijada.
(2) O prazer se farta logo. Quantos sorvetes sou capaz de tomar antes que ele se transforme de objeto de prazer em causa de sofrimento? Quantos copos de suco de pitanga sou capaz de tomar antes que o corpo diga: “Não aguento mais!?”. Quantos beijos se pode dar na pessoa amada antes de enjoar? O prazer tem vida curta. O evangelho do prazer reza: “Bem-aventurados os que têm fome, porque serão fartos”.
Sobre a alegria:
(1) A alegria não precisa da posse do objeto desejado para existir. Lembro-me do rosto de um amigo – ele já morreu –, mas esta simples memória me traz alegria, junto com uma pitada de tristeza. Sentimos alegria lendo uma obra de ficção, um objeto que nunca existiu pode nos dar alegria, como é o romance entre Fiorentino Ariza e Firmina Daza120 ou o filme A festa de Babette. Paul Valéry: “Que somos nós sem o socorro das coisas que não existem?”. Que seres estranhos nós somos, capazes de nos alegrar comendo frutos inexistentes!
(2)  A alegria nunca se farta. A alegria pede mais alegria. Alegria é fome insaciável. Da alegria nunca se diz: “Estou satisfeito!”, “Chega!”. O evangelho da alegria é diferente do evangelho do prazer: “Bem-aventurados os que têm fome, porque terão mais fome”.
 
Mas, vez por outra, a alegria e o prazer acontecem juntos. Quando isso acontece, o corpo experimenta uma efêmera epifania do Paraíso: o divino se faz carne...
 
Alves, Rubem, Variações sobre o Prazer, 6ª edição, São Paulo: Planeta, 2011.

Igualdade entre homens e mulheres (1622) - Marie de Gournay

  “A maioria dos que defendem a causa das mulheres, lutando contra essa orgulhosa preferência que os homens se atribuem, lhes dá o troco com...