terça-feira, 25 de maio de 2021

Conhecimento

    Conhecer é a principal atividade pela qual os seres humanos constroem sentidos para a existência. 

    Conhecemos o tempo todo, desde que acordamos até o momento de dormir. Mesmo nos sonhos podem ocorrer "conhecimentos". Neles, podemos enteder coisas que nos parecem estranhas quando estamos acordados ou ter inspirações que iluminam aspectos de nossas vidas. Muitos poetas, romancistas, cientistas, filósofos, pintores, entre outros, garantem que, durante o sonho, eles vivem momentos que os ajudam a compreender e melhorar seu trabalho. Não é a toa que costuam ter um caderno perto da cama, para anotar suas inspirações. 

    Seja na vigília, seja no sonho, se alguma experiência tem sentido par anós e se conseguimos entendê-la com clareza, dizemos ter conhecimento.

    A atividade de conhecer acontece de diferentes modos e não é idêntica para todas as pessoas. Conhecemos o cheiro do café que tomamaos de manhã, assim como conhecemos um texto de literatura ou uma equação matemática estudada na escola, como ainda conhecemos a emoção sentida ao viver uma situação alegre, triste etc. Conhecemos também a cor da camiseta que vestimos, assim como o cientista explica o que são as cores do arco-íris. 

    A filosofia, por ser um pensamento sobre o pensamento, interessa-se de modo especial pelo tema do conhecimento. No entanto, justamente como tal, a filosofia, mais do que "explicar" o mundo, como fazem os cientistas, artistas, literatos e outros cultivadores do saber, interroga pelo que significa conhecer. Trata-se de fazer um retrato da realidade? De interpretá-la? De mudá-la? 

    Pelo menos três tipos de respostas foram dados pelos pensadores ao longo da História da Filosofia.

    (...) As três respostas podem ser resumidas como segue:

(1) retratamos a realidade conhecida; (2) retratamos a realidade conhecida, mas apenas parcialmente, pois o retrato que fazemos depende de certas condições que não nos autorizam a concluir que o retrato é direto (há algo, portanto, entre nós e a realidade: a representação que fazemos dela); (3) captamos a realidade conhecida, mas participando do modo de captá-la (sem, por isso, pôr algo intermediário entre ela e nós). 

    (...) Dificilmente algum filósofo acreditár que conhecer é capturar diretametne a realidade conhecida, como se fosse possível, digamos, "enfiar" em nossa consciência a árvore ou o fogo, a madeira, a pedra, o animal ou a pessoa que vemos. Assim, tornou-se consensual, para muitos pensadores, afirmar que conhecemos a realidade e nos relacionamos com ela por meio do "retrato" que dela fazemso. A esse "retrato", chama-se, em geral, de conceito ou ideia. No pensamento antigo, Platão e Aristóteles, entre outros, afirmaram que Ideias, Formas ou Essências eram mais do que simples retratos; eram as "letras" invisíveis com as quais o mundo está "escrito". Conhecer as Ideias seria conhecer as regras do mundo mesmo. Platão chegava a declarar que o ser humano é habitado pelas mesmas Ideias com que o mundo é escrito, pois elas seriam aquilo que permite a atividade de conhecer. 

    Durante a Modernidade, porém, grande parte dos filósofos passou a falar de conceito ou ideia como algo "construído", um "retrato" tirado para representar as leis que organizam o mundo. A ciência moderna, principalmente com seu caráter fortemente mecanicista, contribuiu para o surgimento dessa maneira de entender a ideia, razão pela qual , aqui escremos ideia com "i" minúsculo, a fim de distinguir da Ideia no sentido platônico. 

    Em nossos dias, somos herdeiros diretos da compreensão moderna de conhecimento. Por isso, vale a pena dedicar especial atenção a ela. 

    Entre os filósofos modernos, houve os que consideravam a idea ou o "retrato" que tiramos do mundo como uma representação fiel. Essa maneira de pensar, embora com variações, foi comum a autores dos estilos conhecidos como racionalismo e empirismo. De modo geral, esses filósofos identificavam no ser humano as capacidades da sensação e do intelecto,  responsáveis pela atividade do conhecimento. A sensação seria a cpacidade sentir ou de captar dados por meio dos cinco sentidos; o intelecto, por sua vez, seria a capacidade de elaborar os dados físicos captados, transformando-os em ideias ou conceitos

    (...) Em resumo, se para os racionalistas o ser humano é dotado de um conjunto de dados que permitem a reelaboração das informações sensíveis, para os empiritas o ser humano é como uma folha em branco ou uma tabula rasa (uma tábua lisa, um lousa limpa). Nessa tábua lisa, a experiência sensível grava informações que são reelaboradas pelos seres humanos por meio do hábito, permitindo mesmo inventar outras ideia com base nas ideias vindas da sensibilidade. 

    (...) Outros filósofos, por outro lado, terão reservas com a concepção do conhecimento como simples "retrato" domundo. Sem ser propriamente contrários a ela, não consideram que nosso conhecimento seja cópia fiel da realidade. Por ser justamente um "retrato" da realidade, o conhecimento depende das condições ou da "aparelhagem" dos sujeitos ou indivíduos cognoscentes. Nada justificaria, então, crer que a realidade seja só aquilo que seu "retrato" apresenta. 

    O filósofo mais conhecido quanto a esse modo de entender o conhecimento é certamente Immanuel Kant. Ele concordava com David Hume quando insistia na afirmação dos dados sensíveis como fonte do conhecimento seguro. Aliás, Kant declarava ter sido despertado por Hume de seu sono dogmático. No entanto, Kant também concordava com Descartes, pois considerava muito difícil explicar a elaboração dos dados sensíveis caso não houvesse, em todo ser humano, um "aparelhamento" cognitivo ou uma estrutura que permitisse reelaborar os dados captados por meio dos cinco sentidos. Ainda que a mente ou a capacidade cognitiva dos er humano seja uma táula rasa ou uma folha em branco, ela é um tabula dotada de certas possibilidades, capacidades. Não são as informações captadas pelos cinco sentidos que produzem essa tabula; elas são captadas graças ao fato de já existir uma tabula na qual essas podem ser registradas. 

    Kant percebia, assim, que, ao descrever o conhecimento humano, não era justificável a passagem direta das impressões sensíveis às representações mentais das coisas percebidas e causadoras das impressões. Sozinhos, os cinco sentidos permaneceriam "mudos", pois são incapazes de correlacionar as informações captadas por eles mesmos. Ademais, cada sentido sequer percebe sua própria operação: a visão não percebe o próprio ato de ver, apenas as coisas vistas; a audição não percebe o ato de ouvir, apenas os sons; e assim por diante. Segundo Kant, é preciso, então haver uma estrutura interna nos indivíduos, capaz de sintetizar os dados captados pro meio dos cinco sentidos. De certa maneira, a compreeensão kantiana do conhecimento combina o empirismo de Hume com o racionalismo de Descartes. 

    (...)A estrutura subjetiva composta pelas formas da sensibilidade (tempo e espaço) e pelas categorias do entendimento (as relações de causalidade, entre outras) está presente em todos os seres humanos, pois a comunicação entre eles o comprova.  (...) Assim, mesmo que o conhecimento seja sempre um ato pessoal, ele segue uma estrutura comum a todas as pessoas e anterior a toda experiência, sendo a concição mesma para haver experiência. 

    Dotado de um "aparelho" cognitivo natural e responsável por transformar em representações do mundo os dados da impressão sensível, o ser humano, de acordo com Kant, só conhece de modo seguro, objetivo e mesmo científico aquilo que pode ser captado por esse "aparelho". É possível pensar outras coisas que não são captadas sensivelmente (como Deus, o bem, a beleza e assim por diante); no entanto, tal pensamento não poderá ser considerado objetivo. Por essa razão, Kant distingue entre a razão, capacidade humana de pensar em geral, e o entendimento ou intelecto, capacidade racional de conehcer de modo objetivo e científico. 

    (...) O conhecimento objetivo seria como uma fotografia que interpõe entre nós e a realidade um espelho com a imagem que construímos para retratar a realidade. Sobre essa imagem espelhada pode-se falar de modo objetivo. Mas a realidade pode ser mais ampla do que a imagem construída. 

    Para indicar o caráter mais amplo da realidade e delimitar o campo do que pode ser considerado objetivo, Kant criou uma distinção entre aquilo que a realidade mostra de si mesma (e que pdoe ser conhecido objetivamente por todos) e o que a realidade guarda como seu fundamento (e que está além do que o "aparelho" cognitivo humano pode captar objetivamente). Ao que a realidade mostra de si mesma Kant chama de fenômeno, servindo-se da palavra grega phainomenon, "aquilo que aparece". Trata-se do modo cmo as coisas conhecidas se msotram para o ser humano (sempre no tempo e no espaço e captadas segundo as categorias do entendimento ou intelecto). Ao fundamento das coisas, impossível de ser conhecido objetivamente porque não é captado pelo aparelho cognitivo, Kant chama númeno, também se servindo de uma palavra grega, noumenon, "a coisa em si" ou a coisa com que os humanso depara, porém tomada em si mesma, quer dizer, naquilo que ela é, e não segundo aquilo que os humanso conhecem dela.  (...) Depois de Kant, fenômeno é aquilo que o ser humano pode conehcer nas coisas, porque é o modo mesmo de elas se mostrarem. 

 FILHO, Juvenal Savian, Filosofia e filosfias: existência e sentidos,  Belo Horizonte: Autêntica, 2016.

    

    



segunda-feira, 3 de maio de 2021

Quem é você? (trecho selecionado do livro O mundo de Sofia)

 Sofia jogou a mochila da escola num canto e colocou uma tigela de ração para Sherekan. Depois, segurando a carta misteriosa, largou o corpo sobre um banquinho da cozinha. 

Quem é você?

Se ela soubesse! É claro que ela era Sofia Amundsen, mas quem era esta pessoa? Isto ela ainda não tinha descoberto direito. 

E se tivesse outro nome? Anne Knutsen, por exemplo. Será que só por isso seria também uma outra pessoa?

De repente lembrou-se de que no começo seu pai queria que ela se chamasse Synnove Amundsen. Sofia tentou imaginar-se estendendo a mão e apresentando-se como Synnove Amundsen. Não, não dava. Toda vez que pensava nisso imaginava sempre outra pessoa. 

Então saltou do banquinho e foi para o banheiro com a carta misteriosa na mão. Parou diante do espelho e olhou-se fixamente nos olhos.

- Sou Sofia Amundsen - disse.

Como resposta, a garota do espelho não teve a menor reação. Não importava o que Sofia fizesse, ela fazia a mesma coisa. Com um movimento rápido, Sofia tentou se antecipar à imagem do espelho; mas ela foi igualmente rápida. 

- Quem é você? - perguntou Sofia.

Também desta vez não recebeu qualquer resposta; por um breve instante, porém, não teve certeza de ter sido ela ou sua imagem noe spelho quem tinha feito a pergunta. 

Com o dedo indicador, Sofia apertou o nariz da figura do espelho e disse.

-Voce sou eu.

E como não recebeu qualquer resposta, inverteu a sentença e disse:

-Eu sou você. 

Sofia Amundsen nunca estava muito satisfeita com sua aparência. Com frequência ouvia que tinha lindos olhos amendoados, mas provavelmente lhe diziam isto porque seu nariz era pequeno demais em relação ao tamanho da boca. O pior de tudo eram mesmo os cabelos lisos, que não tomavam forma nenhuma. Às vezes seu pai lhe acariciava os cabelos e a chamava de "a garota dos cabelos de linho", parodiando uma composição de Claude Debussy. Para ele era fácil dizer isto; afinal, não era ele quem estava condenado a carregar a vida inteira cabelos pretos e escorridos de tão lisos. E nos cabelos de Sofia não adiantava passar nada, nem spray, nem gel. 

Às vezes ela achava sua aparência tão estranha que se perguntava se não teria sido um bebê malformado. Sua mãe sempre contara que tivera um parto difícil. Mas será que era mesmo o nascimento que determinava a aparência de uma pessoa?

Não era um tanto esquisito ela não saber quem era? E também não era um injustiça o fato de ela mesma não poder determinar sua aparência? Isto simplesmente lhe tinha sido imposto ao nascer. Seus amigos, estes sim ela talvez pudesse escolher, mas não tinha tido a chance de escolher-se a si própria. Não tinha sequer decidido ser uma pessoa. 

(...)

Não era extraordinário estar viva naquele momento e ser personagem de uma aventura maravilhosa como a vida?

(...)

Depois de pensar um pouco sobre o fato de existir, Sofia não pôde deixar de pensar também que um dia desapareceria. 

Estou vivendo no mundo agora, pensou. Mas um dia terei desaparecido. 

Será que havia uma vida após a morte? Também sobre esta questão o gato não fazia a menor ideia. 

GAARDER, Jostein, O Mundo de Sofia:Romance da história da filosofia, Tradução: João Azenha Jr,  18ª reimpressão,   Capítulo: Terceiro, São Paulo: Cia das Letras, 1995


O pensamento filosófico e a tarefa da filosofia

 A filosofia é um modo de pensar, é uma postura diante do mundo. Ela não é um conjunto de conhecimentos prontos, um sistema acabado, fechado em si mesmo. Ela é, antes de mais nada, um modo de se colocar diante da realidade,  procurando refletir sobre os acontecimentos a partir de certas posições teóricas. Essa reflexão permite ir além da pura aparência dos fenômenos, em busca de suas raízes e de sua contextualização em um horizonte amplo, que abrange os valores sociais, históricos, econômicos, políticos, éticos e estéticos. Por essa razão, ela pode se voltar para qualquer objeto.  Pode pensar sobre a ciência, seus valores, seus métodos, seus mitos; pode pensar a respeito da religião; pode pensar sober a arte; pode pensar acerca do próprio ser humano em sua vida cotidiana. Uma história em quadrinhos ou uma canção popular também podem ser objeto da reflexão filosófica. 

A filosofia é um jogo irreverente que parte do que existe, critica, coloca em dúvida, faz perguntas importuna, abre as portas das possibilidades, faz-nos entrever outros mundo e outros modos de compreender a vida. 

A filosofia incomoda porque questiona o modo de ser das pessoas, das culturas, do mundo. Questiona as práticas política, científica, técnica, ética, econômica, cultural  e artística.  Não há área em que ela não se meta, não indague, não perturbe. E, nesse sentido, a filosofia é perigosa,  subversiva,  pois vira a ordem estabelecida de cabeça para baixo. 

Essa subversão da ordem, entretanto, não é feita gratuitamente, não é um quebrar regras e costumes simplesmente por quebrar. A maior parte dos filósofos subverteu a ordem porque, ao indagar sobre a realidade de sua época, fez surgir novas possibildiades de comportamento e de relação social.  Do ponto de vista da ordem estabelecida, isto é, das instituições e da ideologia dominante, eles destruíram uma tradição. Do ponto de vista da história, eles nos fizeram ver injustiças, arbitrariedades, estratagemas de dominação e de exploração. 

Se o patriarcalismo, como ordem divina da criação, por exemplo, não tivesse sido colocado em dúvida por pensadores de ambos os sexos e por pessoas engajadas no movimento em prol da igualdade de homens e mulheres em termos de capacidade intelectual e moral, estas, ou seja, mais de 50% da população mundial, ainda hoje não seria considerada cidadã nem teria direito de votar e ser votada. 

(...)

Quando a filosofia surgiu, entre os gregos, no século VI a.C, ela englobava tanto a indagação filosófica propriamente dita quanto o que hoje chamamos de conhecimento científico. O filósofo teorizava sobre todos os assuntos, procurando responder ao porquê das coisas. É por isso que os filósofos Tales e Pitágoras e depois o matemático Euclides (de Alexandria) dedicaram-se também ao estudo da gemometria. Aristóteles, por sua vez, debruçou-se sobre problemas físicos e astronômicos, porque estes interessavam à cultura e à sociedade de sua época

Foi a partir do século XVII, com Galileu Galilei e o aperfeiçoamento do método científico, fundado na observação, experimentação e matematização dos resultados, que a ciência começou a se constituir como forma específica de abordagem do real e a se destacar da filosofia. Apareceram, pouco a pouco, as ciências particulares, que investigam a realidade sob pontos de vista específicos: à física interessam os movimentos dos corpos; à biologia, a natureza dos seres vivos; à química, as transformações das substâncias; à psicologia, os mecanismos do funcionamento da mente humana; à sociologia, a organização social etc.

A partir de então, o conhecimento foi fragmentado entre as várias ciências, pois cada qual se ocupava somente de de uma pequena parte do real . As afirmações de cada uma elas são chamadas juízos de realidade,  porque se referem aos fenômenos e pretendem mostrar como  estes ocorrem e como se relacionam. De posse desses dados, torna-se possível prevê-los e controlá-los. 

A filosofia trata dessa mesma realidade, mas, em vez de fragmentá-la em conhecimentos particulares, toma-a como totalidade de fenômenos, ou seja, considera a realidade a partir de uma visão de conjunto. Qualquer que seja o problema, a reflexão filosófica leva em conta cada um de seus aspectos, relacionando-o ao contexto dentro do qual ele se insere e restabelecendo a integridade do universo humano. 

(...)

Cabe ao filósofo refletir sobre o que é ciência, o que é metodo científico, sua validade e seus limites. A ciência é realmente um conhecimento objetivo? O que é a objetividade e até que ponto um sujeito histórico - o cientista - pode ser objetivo? 

Cabe a ele refletir sobre a arte: o belo existe? É um critério para se determinar o que é a arte? Ou haverá outros valores estéticos mais adequados para esse julgmento? (...) Compete ao filósofo, também, refletir sobre a condição humana atual: O que é o ser humano? O que é liberdade? O que é trabalho? 

(...) 

A filosofia quer encontrar o significado mais profundo dos fenômenos. Não basta saber como eles acontecem, mas o que significam na ordem geral do mundo humano. Ela também emite juízos de valor ao julgar cada fato, cada ação em relação ao todo. Ela também vai além daquilo que é, para propor o que poderia ser. É, portanto, indispensável para a vida de todos aqueles que desejam ser seres humanos completos, cidadãos livres e responsáveis por suas escolhas. 

texto selecionado e retirado do livro Temas de Filosofia, de Maria Lúcia de Arruda Aranha e Maria Helea Pires Martins (Editora Moderna, 2005)

Igualdade entre homens e mulheres (1622) - Marie de Gournay

  “A maioria dos que defendem a causa das mulheres, lutando contra essa orgulhosa preferência que os homens se atribuem, lhes dá o troco com...