"Conhecimento e verdade são dois conceitos diferentes. Mas também são solidários. Nenhum conhecimento é a verdade; mas um conhecimento que não fosse verdadeiro não seria um conhecimento (seria um delírio, um erro, uma ilusão...). Nenhum conhecimento é absoluto; mas só é um conhecimento - e não simplesmente uma crença ou uma opinião - pela parte de absoluto que comporta ou autoriza.
Seja, por exemplo, o movimento da Terra em torno do Sol. Ninguém pode conhecê-lo absolutamente, totalmente, perfeitamente. Mas sabemos que esse movimento existe e que se trata de um movimento de translação. As teorias de Copérnico e de Newton, por mais relativas que sejam (já que são teorias), são mais verdadeiras e mais seguras - logo, mais absolutas - do que as de Hiparco ou de Ptolomeu. [...] [Dizer que] todo conhecimento é relativo não significa que todos os conhecimentos se equivalem. O progresso de Newton e Einstein é tão inconteste quanto o que vai de Ptolomeu a Newton. [...]
No entanto, não se deve confundir conhecimentos com ciências, nem reduzir aqueles a estas. Você conhece seu endereço, sua data de nascimento, seus vizinhos, seus amigos, seus gostos, enfim, mil e uma coisas que nenhuma ciência ensina nem garante. A percepção já é um saber, a experiência já é um saber, ainda que vago [...], sem o qual qualquer ciência seria impossível. 'Verdade científica' não é, portanto, um pleonasmo: há verdades não científicas e teorias científicas que descobriremos um dia não serem verdadeiras. [...]
Sem dúvida temos certezas, várias das quais nos parecem certezas de direito (certezas absolutamente fundamentadas ou justificadas); mas 'a certeza de que há certezas de direito nunca é mais que uma certeza de fato'. Cumpre concluir que a certeza mais sólida, a todo rigor, não prova nada: não há provas absolutamente probatórios.
Devemos então renunciar a pensar? De jeito nenhum. 'Pode ser que haja demonstrações verdadeiras', observa Pascal, 'mas não é certo'. De fato, isso é coisa que não se pode demonstrar - já que toda demonstração a supõe. [...] Que tudo é incerto, não é uma razão para parar de buscar a verdade. Porque tampouco é certo que tudo é incerto, observava ainda Pascal, e é isso que dá razão aos céticos ao mesmo tempo que os impede de prová-lo. [...] O ceticismo não é o contrário do racionalismo; é um racionalismo lúcido e leva às últimas consequências - até o ponto em que a razão, por rigor, chega a duvidar da sua aparente certeza. Pois o que prova uma aparência?
A sofística é outra coisa: não pensar que nada é certo, mas pensar que nada é verdadeiro. Isso nem Montaigne nem Hume jamais escreveram. Como, se tivessem acreditado, teriam podido filosofar e por que teriam filosofado? O ceticismo é o contrário do dogmatismo; a sofística, o contrário do racionalismo ou mesmo da filosofia. Se anda fosse verdadeiro, que restaria da nossa razão? Como poderíamos discutir, argumentar, conhecer? 'A cada qual sua verdade?' Se fosse assim, já não haveria verdade nenhuma, porque ela só vale se for universal. [...] Quem não vê os perigos que aí se escondem? Se podemos fazer qualquer coisa: a sofística conduz ao niilismo, assim como o niilismo leva à barbárie. [...]
É por isso que, também, nunca acabaremos de buscar. Não porque não conhecemos nada, o que não é muito verossímil, mas porque nunca conhecemos tudo. O grande Aristóteles, com o seu habitual senso de proporção, diz uma coisa impecável: 'A busca da verdade é ao mesmo tempo difícil e fácil: ninguém pode alcançá-la absolutamente, nem deixá-la escapar totalmente'.
Entre a ignorância absoluta e o saber absoluto, há lugar para o conhecimento e para o progresso dos conhecimentos.
(Comte-Spoiville, André. Apresentação da filosofia, São Paulo:Martins Fontes, 2002, p.57-64)
Sofística: no contexto, parte da lógica que estuda os sofismas ou argumentos falaciosos, que dão a ilusão de validade.
Niilismo: do Latim nihil, "nada". É a posição de quem não acredita em anda ou de quem perdeu valores e objetivos.
Material retirado do livro Filosofando: introdução à filosofia, de Maria Lúcia de Arruda Aranha e Maria Helena Pires Martins, 2016, p.81